São Paulo, sábado, 28 de janeiro de 1995
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Negócios privados, vícios públicos

GILBERTO DIMENSTEIN

BRASÍLIA – A Folha divulgou ontem que foram inspecionados em São Paulo 45 laboratórios farmacêuticos: 39 deles (87%) foram condenados. Mostraram-se fotos de alguns funcionando apesar da ordem de fechamento. Aproveito para expor uma autocrítica: chegou-se a esse ponto de descalabro porque a imprensa tem dose de responsabilidade. Explico melhor.
O jornalismo investigativo desenvolveu-se na cobertura das mazelas públicas, num reflexo da evolução da cidadania. A evolução, porém, é capenga: o consumidor é, ainda hoje, essencialmente um órfão. Um dos motivos: não funcionam os sistemas de fiscalização dos produtos. Outro (e vamos ser sinceros): desenvolvemos mais repórteres para investigar a esfera estatal do que os negócios e ações privadas.
As revelações da Folha sobre como se fazem remédios ou a evasão fiscal de grupos empresariais no Brasil é indicação do vastíssimo campo que se abre. O eleitor conhece mais a vida de seu representante do que o consumidor sobre o que ingere, a educação de seus filhos, o hospital que frequenta, o carro que usa e assim por diante.
Compreensível: tantas as mazelas cometidas nos palácios, ministérios, assembléias que acabamos absorvidos.
Sou dos que acham que Brasília vai continuar produzindo crises e escândalos. Não tantos, porém, como nos últimos tempos. Consequência: as demais dimensões da cidadania passam a exigir investigações mais amplas. Não se restringe apenas ao segmento do Estado, mas se dissemina pelo público. E, aí, monta-se uma escala mais sensata de valores.
Mais do que justificada a indignação com a anistia a Humberto Lucena. Mas o que é pior: a manipulação detestável da gráfica por parlamentares ou os crimes cometidos por laboratórios que vendem veneno? Os desvios de fundo de pensão ou escolas privadas que usam livros didáticos que mereceriam ir para o lixo? O corporativismo dos políticos provoca ojeriza. Pior ou melhor do que o dos médicos ou advogados?
Com um país menos instável, a notícia vai democratizar (e para melhor) seus alvos. A verdade é que o setor público está virando bode expiatório da nação. Daí, por exemplo, a histeria antiparlamentar.

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