São Paulo, domingo, 29 de janeiro de 1995
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O sigilo bancário e o contraditório

RICARDO DIAS LEME

Em matéria publicada nesta Folha em 15 de janeiro último, ("Limites judiciais da acusação beneficiam a sociedade"), o articulista Walter Ceneviva, com a serenidade que o caracteriza, trouxe ao debate alguns temas que merecem reflexão, como a exclusividade da quebra do sigilo bancário pelo Poder Judiciário e a proposta de acompanhamento obrigatório pelo Ministério Público e pela defesa do inquérito policial.
A questão da violação do sigilo bancário tem gerado muita controvérsia, causada essencialmente pelo enfoque equivocado que a ela se conferiu.
A primeira indagação a ser feita é quem aproveita o sigilo bancário? A maioria dos brasileiros não tem acesso ao sistema financeiro. Entre aqueles que possuem contas bancárias, a maior parte se constitui de assalariados, com escassa possibilidade de fraudar o Fisco.
Não espanta, portanto, que a maior resistência à quebra do sigilo bancário parta da Casa Grande e de seus representantes: banqueiros, industriais, comerciantes e profissionais liberais. A senzala até agora permanece alheia ao debate.
O essencial para a garantia dos direitos individuais, contudo, não é a qualidade do agente público (juiz, promotor) autorizado a quebrar o sigilo, mas o uso indevido das informações obtidas com essa quebra.
O que deve ser objeto de proteção não são as movimentações, o saldo, as operações financeiras dos cidadãos, ou seja, o sigilo bancário em si mesmo, mas o uso indevido, a divulgação irregular dessas informações pelo agente público ou privado, aí se incluindo banqueiros e funcionários de instituições financeiras.
O que se deve punir, e rigorosamente, é o uso deturpado, a divulgação indevida desses dados por quem quer que seja, protegendo-se o sigilo, que não se confunde com a exclusividade do acesso a esses dados aos próprios bancos, aos correntistas e ao Judiciário, quando existir um interesse público que justifique uma investigação.
Imagine-se se no caso do ex-presidente Collor, a CPI do Congresso fosse pedir autorização judicial para quebrar o sigilo bancário dos envolvidos. Certamente, utilizando-se de todos os recursos judiciais possíveis, o ex-presidente teria concluído seu mandato e as investigações se arrastariam até hoje.
Quanto ao "aprimoramento" de se tornar obrigatório o acompanhamento de todos os inquéritos pelo Ministério Público e pela defesa, em nome da igualdade jurídica das partes e da ampla defesa, não aperfeiçoaria os mecanismos de aferição da culpa.
Ao contrário, a transformação do inquérito policial de inquisitivo em contraditório, com ampla defesa e os recursos a ela inerentes, além de tornar inútil a instrução contraditória perante o Judiciário, transferiria a resistência, legítima e saudável, à pretensão punitiva, expressa na denúncia, em resistência ao andamento das investigações criminais.
Ou seja, a senzala continuaria na mesma situação, quer pela menor complexidade dos crimes que em geral comete, quer por deficiência de seus advogados, quer por deficiência da assistência judiciária a ser prestada pelo Estado.
Já a Casa Grande, cuja impunidade no Brasil dispensa comentários, ganharia mais um privilégio: já não basta a prisão especial e a possibilidade remota de ser processada, não seria nem mesmo investigada...
E por falar em garantias individuais e de limites judiciais da acusação, necessários, sem dúvida, o que dizer dos poderes da mídia, que se substitui frequentemente à acusação e ao próprio Judiciário, acusa, julga e condena antecipadamente, provocando abusos e consequências desastrosas para os direitos individuais, equivalentes senão maiores que o Estado (como o recente caso de proprietários de uma escola "acusados" pela imprensa).
Por que não "aprimorá-la", tornando obrigatório o acesso da defesa às redações de jornais, revistas, rádios e televisões para conhecer antecipadamente as matérias, aperfeiçoando os mecanismos de verificação de culpa e os de garantia da defesa?

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