São Paulo, domingo, 29 de janeiro de 1995
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O lucro inflacionário é uma "não-renda"

IVES GANDRA DA SILVA MARTINS

A matéria pode ser analisada tanto pelo lado jurídico quanto pelo contábil
O professor Eliseu Martins, em artigo tecnicamente correto, contesta artigo meu, publicado na Folha, sobre o "lucro inflacionário". O enfoque que dei à matéria foi jurídico. O dele, contábil.
No aspecto contábil não divergimos. Para compreensão dos leitores simplifiquei a explicação de lucro inflacionário, alertando-os de que todas as simplificações são mutiladoras.
O professor Eliseu Martins aceitou a fórmula simplificada e, como professor de contabilidade, acrescentou aspectos técnicos, de natureza estritamente contábil, com os quais concordo, enquanto nessa área.
Com a honestidade intelectual que o caracteriza, alertou o professor Eliseu Martins que, se o passivo "financiado" fosse corrigido na mesma conta da atualização do ativo permanente e do patrimônio líquido, não haveria saldo credor, mas que a "falha legal" na demonstração de resultado cria a questão.
A seguir, reconhece que constitui sério problema o fato de o financiamento do ativo permanente se dar com encargos prefixados embutidos no valor total a pagar, com distorção do resultado presente e futuro e com deformação do resultado do ativo, do passivo e do patrimônio líquido, mas equaciona tal problema, no plano teórico, pela técnica da correção integral, afastando o diferimento do lucro inflacionário, com reajuste do valor futuro, como determinava a lei até 1994.
Em outras palavras, no plano escritural a técnica contábil apresenta soluções para um problema em que a contabilidade é apenas ciência vicária da interpretação jurídica, remanescendo a questão jurídica de saber o que, para o direito e não para a contabilidade, significa o vocábulo "aquisição de disponibilidade econômica", que não consta de nenhuma lei ordinária de Imposto de Renda ou de contabilidade, mas de norma com eficácia de lei complementar, a qual determina o que é fato gerador do Imposto de Renda.
E, neste ponto, as nossas convergências contábeis cedem lugar a divergências jurídicas, visto que a interpretação do direito se dá dentro de categorias jurídicas e não de outras ciências, que apenas podem-lhe servir de apoio.
É de se lembrar que entre 1977 e 1988 as "contribuições sociais", cuja natureza jurídica-acadêmica, no direito pátrio e comparado, é de tributo, perdeu o "perfil tributário", porque o legislador supremo entendeu que "tributo" e "contribuições sociais" eram dois tipos diferentes de imposição. E em decisão do Supremo Tribunal Federal, a opinião unânime da doutrina cedeu lugar ao texto escrito da Constituição.
A discussão do que seja o fato gerador do Imposto de Renda é matéria que ainda hoje espicaça a inteligência dos juristas dedicados ao direito tributário.
Em 1984, coordenei o 11º Simpósio Nacional de Direito Tributário para discutir exclusivamente a conformação da hipótese de imposição do Imposto de Renda, tendo sido publicado livro (Caderno de Pesquisas Tributárias nº 11) com estudos de Antonio Carlos Garcia de Souza, Antonio Manoel Gonçalves, Carlos da Rocha Guimarães, Gilberto de Ulhôa Canto, Hugo de Brito Machado, Ian de Porto Alegre Muniz, Ives Gandra da Silva Martins, José Eduardo Soares de Mello, Luciano da Silva Amaro, Ricardo Mariz de Oliveira, Wagner Balera, Waldir Silveira de Mello e Ylves José de Miranda Guimarães sobre o mesmo tema, com acentuadas divergências sobre o significado da expressão "aquisição de disponibilidade econômica e jurídica", constante do artigo 43 do CTN, que declara o que se segue.
"O imposto, de competência da União, sobre a renda e proventos de qualquer natureza tem como fato gerador a aquisição da disponibilidade econômica ou jurídica: 1. de renda, assim entendido o produto do capital, do trabalho ou da combinação de ambos; 2. de proventos de qualquer natureza, assim entendidos os acréscimos patrimoniais não compreendidos no inciso anterior."
Na ocasião, o ministro José Carlos Moreira Alves –que abre todos os anos os Simpósios Nacionais do Centro de Extensão Universitária– referiu-se expressamente à complexidade do tema e às dificuldades de uma solução definitiva.
O ministro Sebastião Alves dos Reis, do então Tribunal Federal de Recursos, hoje Superior Tribunal de Justiça, defendeu a tese (que, aliás, também defendi) de que não há disponibilidade jurídica, pois toda a disponibilidade econômica é necessariamente jurídica, caso contrário, não estaria no mundo do direito.
O ministro Justino Ribeiro, do mesmo Tribunal, entendia, à época, que "disponibilidade" está vinculada ao conceito de "liquidez", tendo sido o relator de questão em que não admitiu a nota promissória "pro soluto", isto é, nota promissória que "quita dívida" no campo do direito privado, como aquisição de disponibilidade.
Na mesma linha, o ministro Aldir Passarinho, do Supremo Tribunal Federal –então no TFR– hospedou a tese do ministro Justino Ribeiro, assim como todos os demais ministros daquela Turma da Corte Federal, em decisão transitada em julgado com recurso extraordinário não-aceito no STF.
Tais considerações eu as trago para mostrar que a matéria, no campo do direito, não oferece a tranquilidade acadêmica que para o professor Eliseu Martins existe na contabilidade.
As palavras, no direito, têm um conteúdo ontológico. Devem ser interpretadas dentro de um contexto. E a lei complementar, que condiciona o legislador ordinário, dá os parâmetros exegéticos da Constituição para as normas de aplicação.
O conceito de fato gerador do Imposto de Renda é anterior ao conceito de lucro inflacionário, devendo este se submeter à lei complementar, enquanto "aquisição de disponibilidade econômica", e não a lei complementar à lei ordinária.
E, no caso, admitindo-se a tese de "liquidez" como real aquisição de disponibilidade econômica para a configuração do fato gerador do Imposto de Renda de uma empresa, independentemente das equações meramente contábeis, o lucro inflacionário, que se exterioriza na contabilidade de forma meramente escritural, pode representar, nos seus reflexos econômicos, uma desimobilização forçada, para adimplência do tributo, se exigido antes de sua realização (alienação do bem com lucro).
Tal fato não me parece conformar a aquisição de disponibilidade (não há disponibilidade real daquela parcela que deve ser retirada para pagamento do tributo), a que se refere o legislador supremo.
A matéria, como coloquei no meu artigo –e o professor Eliseu Martins reconhece–, é polêmica. Dificilmente, ele e eu mudaremos nossas opiniões. Quando os dois examinamos, ao lado do professor Alcides Jorge Costa, o brilhante advogado João Francisco Bianco em sua dissertação para especialista (graduação "lato sensu") do Centro de Extensão universitária, já as nossas divergências conceituais sobre a matéria eram evidentes, em face dos enfoques, o dele contábil e o meu jurídico.
Felizmente, com a provável eliminação da inflação, tal discussão será reminiscência do passado, porque, sem inflação, o "lucro inflacionário" deixa de ser problema jurídico ou contábil.
Até lá, entendo ser o lucro inflacionário, no plano jurídico, uma "não-renda" e, por esta razão, a técnica consagrada na legislação passada, de diferimento do pagamento do imposto da quase totalidade de sua apuração até a realização do lucro, sempre me pareceu a mais adequada, apesar de sempre ter defendido que o diferimento deveria ser total e não parcial.

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