São Paulo, domingo, 29 de janeiro de 1995
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O grande espetáculo do destino

PAULO EMILIO SALLES GOMES

"A primeira coisa a ser dita sobre "The Long Voyage Home" (A Longa Viagem de Volta, 1940), é que esse filme nos dá essa impressão de nobreza que os críticos franceses procuravam, e encontravam, no cinema da era silenciosa. Essa nobreza que no ano cinematográfico de 1940 só nos foi sugerida pelo "Grapes of Wrath" (Vinhas da Ira) do próprio John Ford e, sobretudo, pelo "Alexandre Nevsky" (Cavaleiros de ferro) de Eisenstein; e eu não estou me esquecendo do "Of Mice and Men" (Carícia Fatal) de Lewis Milestone, nem do "Our Town" (Nossa cidade) de Sam Wood.
Como em todo grande espetáculo de homens, o problema em torno do qual se desenvolve "The Long Voyage Home" é o do Destino. No espetáculo humano, os homens ou sofrem e suportam o Destino, e é o Drama, ou então reagem contra ele, forjam um outro Destino, e é a Epopéia. No "The Long Voyage Home" quem impera, implacável, é o Destino: é a história de um punhado de homens condenados ao mar.
É preciso desde logo ser desfeito um equívoco provável. Pelo fato de ser um filme sem astros, pode-se ser levado a catalogar "The Long Voyage Home" como um filme coletivo no sentido dos russos clássicos. Ora, isso é errado. A meia dúzia de atores de primeiro plano do "The Long Voyage Home" pode representar a massa dos homens que trabalham no mar, mas eles não são essa massa; ao passo que no "Potemkin" é a totalidade dos marinheiros que trabalha e age, é a totalidade dos oficiais que é trucidada, é a totalidade dos soldados da repressão que marcha, é a totalidade do povo de Odessa que surge. Os "close-up" não indicam nenhuma hierarquia de atores, mas unicamente detalham e condensam alguns aspectos de uma coletividade homogeneizada. Mesmo a repetição de imagens de algumas figuras humanas não significa maior importância dessas figuras, trata-se aqui, unicamente, de uma repetição de temas numa sinfonia de imagens. (...)
Na indústria cinematográfica americana a divisão do trabalho, para facilitar a produção em série, está largamente desenvolvida. Um filme é uma obra de especialistas de cenário, "découpage", "décors", "montage", "gags", etc. A pessoa que tem a incumbência de supervisionar isso tudo, o produtor, é em geral um homem de negócios. O diretor fica pois com suas possibilidades extremamente limitadas. O diretor tem, na América, raramente, possibilidade de ser um criador, um realizador, como era na Rússia, na Suécia, e mesmo na França e na Alemanha. Nesses países o diretor, quando não é seu próprio cenarista e "monteur" (montador), que é o caso para a maioria dos filmes de Eisenstein e René Clair, intervém na intimidade de todos os ramos da produção.
Nos Estados Unidos, exceto para o caso singular de Charles Chaplin, só diretores com a personalidade de um Stroheim ou o prestígio de um King Vidor dos bons tempos é que conseguiam fazer essa intervenção. Mais modernamente, só John Ford conseguia uma certa liberdade para a escolha do cenarista, alguns atores etc.
No "The Long Voyage Home" Ford é não só o diretor, mas o produtor, o patrão. E o filme reflete autenticamente o criador, com todos os seus defeitos e incertezas, e todas suas admiráveis qualidades.(...)
Trabalhou com gente que já conhecia e que escolhera livremente. O resultado foi admirável e nos faz desejar uma chance idêntica para King Vidor, Fritz Lang, Mamoulian e mais alguns outros, para que se possa fazer uma idéia clara sobre a decadência desconcertante desses trabalhadores de imagens. É verdade que para quem tem sempre em mente o problema ainda não solucionado –cinema silencioso-cinema falado– um dos aspectos gerais da questão é bem conhecido.
O itinerário artístico de John Ford é muito longo, e diferente do da maioria dos velhos diretores de cinema. Ford começou a dirigir filmes em 1915, em pleno período de formação do cinema, atravessou toda a era clássica do cinema silencioso, entrou no período falado, e diferentemente de seus companheiros de jornada, o grande David Griffith à frente, que produziram o melhor de sua obra durante o período silencioso, Ford só em 1934-1935 é que se destaca como um artista com uma personalidade, como um "élan". Desse longo período de aprendizado não se sabe muita coisa, além do nome de alguns filmes que produziu. O crítico italiano Ettore Margadonna se interessou por um "The Iron Horse" (O Cavalo de Ferro), "western" realizado em 1924 que mostra a construção da primeira estrada de ferro no sertão norte-americano, e um "Three Bad Man" (Três Homens Maus, 1926), filme que se desenrola durante a "gold rush" (corrida do ouro) de 1877 na Califórnia. De qualquer maneira não são filmes catalogados.
John Ford provocou a atenção dos críticos em 1934-1935 com três filmes: "The Lost Patrol" (A Patrulha Perdida), "The Whole Town's Talking" (O Homem que Nunca Pecou), e sobretudo "The Informer" (O Delator). O primeiro, a luta de um grupo de homens contra o deserto, a sede, o calor e os nativos, é um filme com bastante dignidade e simplicidade e guarda-se dele, saudosamente, a imagem de homens e cavalos matando sofregamente a sede numa poça de água encontrada num oásis. O segundo, que não conheço, parece ser uma comédia de quiproquós realizada com grande habilidade. Do "The Informer", uma das obras mais importantes de John Ford, diremos alguma coisa num parágrafo abaixo.
Ultimamente, antes do "The Long Voyage Home", tivemos dois filmes de John Ford, em 1939 "Stagecoach" (No Tempo das Diligências) e em 1940 "Grapes of Wrath" (Vinhas da Ira). O Primeiro é um filme desigual em que se encontra do ótimo e do péssimo. O início é admirável, e os americanos que frequentemente sabem começar um filme raramente lançaram uma história tão bem como a dessa diligência cheia de passageiros heterogêneos (...) que devem viver juntos uma aventura cheia de perigos. Admiram-se ainda no desenrolar do filme alguns velhos temas do velho "western", vivificados por um sopro novo, e as magníficas cenas finais da luta singular dos dois homens na rua mergulhada em completa escuridão. Detesta-se particularmente o episódio da cantoria na estalagem quando o filme, literalmente estrangulado, cai e pára. No "Grapes of Wrath", ficamos comovidos diante da dramática viagem do caminhão cheio de mulheres, crianças e homens sofredores, no meio dos quais surge a figura heróica da "ma" (mãe) Joad, essa extraordinária Jane Darwell, e diante da nobreza estranha dessas fisionomias esquálidas focalizadas de baixo. "Grapes of Wrath" é um filme que analisado com frieza no plano propriamente cinematográfico é simplesmente bom, mas que merece ter um destaque especial, devido ao fato de ser uma comunhão com os desgraçados do mundo.
No conjunto das obras de seu diretor, "The Long Voyage Home" deve ser colocado juntamente com "The Informer" (O Delator) e "The Plough and the Stars" (Jornadas Amargas) entre os que poderiam ser chamados de tipos irlandeses de filmes de John Ford. Não vi "The Plough and the Stars", com Barbara Stanwyck e Preston Foster, realizado em 1937. O físico Occhiallini, um dos mais fiéis amantes do cinema que conheço, me informou que é o mais profundamente irlandês de todos os três. A ação passa-se em plena revolução irlandesa de 1921. Trabalham nele Barry Fitzgerald e Joseph Kerrigan, respectivamente o Cocky e o Nick de "The Long Voyage Home", ambos irlandeses.
"The Informer" é para mim, depois de "The Long Voyage Home", a obra mais importante de John Ford. Admirei a atualmente rara unidade de desenvolvimento desse filme, a peregrinação pelos bares de Dublin do delator, encarnado em Victor McLaglen, cuja personalidade nunca foi melhor aproveitada; conheci Joseph Kerrigan que nos apresentou aquela canalhice plástica que devia transformar-se em "The Long Voyage Home", na melhor do cinema americano; assisti a uma cena fúnebre, das cenas fúnebres de John Ford, quando o corpo do revolucionário irlandês morto (Preston Foster) é velado por sua família e pelos companheiros e entra o delator, o culpado daquela morte que no meio do silêncio começa a dar pêsames aos gritos e deixa cair umas moedas cujo tilintar o reduz ao silêncio, e que têm um brilho estranho. Além disso, é inesquecível aquele cartaz com o retrato do revolucionário e a promessa de um prêmio para quem o entregar à polícia, aquele cartaz que é levado pelo vento, tema querido de Ford, e que se cola às pernas do delator perseguido pelo remorso. Aceito mesmo o fim discutível, na Igreja, porque a sensação de Irlanda que se tem durante todo o filme continua até a última imagem.
No "The Long Voyage Home" a Irlanda também está sempre presente, nos atores, nos sotaques, nas músicas, nas canções, nas danças, na saudade da Irlanda, no Limehouse londrino, cuja fauna é predominantemente irlandesa e cuja atmosfera lembra incessantemente a dos "bas-fond" de Dublin.
A alma profundamente irlandesa de John Ford exprime-se mais completamente e com mais liberdade em assuntos e atmosferas irlandesas. Demonstração de que o cinema é uma arte nacional –fundamento número um da Nova Arte.
Ainda duas questões: 1ª - "The Long Voyage Home" não admite reações sentimentais no mau sentido. "The Long Voyage Home" é um filme másculo. A atitude do comandante do S. S. Glencairn, cortando a palavra ao armamentista toda vez que este queria fazer literatura com o perigo que os marinheiros iam correr, é uma advertência de caráter muito mais geral do que pode parecer à primeira vista.
2ª questão - Deus, o Cristo, estão ausentes de "The Long Voyage Home"? Não creio. A vontade que têm todos aqueles homens que Ollie volte para casa, porque ele tem um lar, uma mãe, essa vontade nos coloca diante de uma comunhão e de uma solidariedade que nos foram ensinadas pelo Cristo.

O trecho acima foi extraído da crítica de Paulo Emilio Salles Gomes publicada originalmente na revista "Clima" nº 1, de maio de 1941, e republicada no livro "Paulo Emilio - Um Intelectual na Linha de Frente", editado em 1986 pela Brasiliense e pela Embrafilme/Ministério da Cultura

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