São Paulo, domingo, 29 de janeiro de 1995
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Frankenstein , o idiota da moral

HAROLD BLOOM
ESPECIAL PARA A FOLHA

Frankenstein, o idiota da moral
A tragédia do personagem romântico não vem do impulso prometéico, mas de sua incapacidade de amar
Os terrores do romantismo são doenças do excesso de consciência
HAROLD BLOM
O espectador que carrega seu gosto obscuro, mas autêntico, pelo sublime para o cinema mais próximo, onde vai assistir ao mais recente numa infinita série de Frankensteins, compartilha de uma forma romântica de terror, já com quase 150 anos. Mary Shelley, que mal completara 19 anos quando escreveu o "Frankenstein" original, era filha de dois grandes rebeldes intelectuais — William Godwin e Mary Wollstonecraft — e segunda mulher de Percy Bysshe Shelley, outro grande rebelde e inigualado poeta lirico.
Mesmo se nunca tivesse escrito nada, portanto, já não seria esquecida. Mas é lembrada, de direito, como a autora de um romance não apenas valioso em si, mas profético de um mundo intelectual por vir, o romance de um impulso prometéico que se faz sentir até hoje.
Frankenstein, para a maioria de nós, é o nome de um monstro e não de seu criador. Espectadores e leitores, nessa sua aparente confusão, ajudaram, de fato, a construir um mito cuja base é a dualidade essencial do romance. Qualquer leitura crítica de "Frankenstein" deve partir da idéia, formulada pela primeira vez por Richard Church e Muriel Spark, de que o monstro e seu criador são metades antagônicas de um único ser.
Essa antítese entre o cientista e sua criatura é bastante complexa e precisa ser descrita no contexto mais amplo da literatura romântica. A imagem de uma sombra, ou duplo do eu, é uma constante em Blake e Shelley e muito frequente, também, embora com caráter menos conceitual, nos outros poetas românticos, especialmente Byron. Para Mary Shelley, ela é a imagem predominante e explica grande parte da força de seu romance.
O título integral do romance é "Frankenstein, ou o Prometeu Moderno", e muito embora o dr. Victor Frankenstein não seja igual ao poeta Shelley, o "Prometeu moderno" não seria uma má descrição dele, ou de seu amigo Byron. Nenhuma outra figura da mitologia se adapta melhor à sensibilidade moral dos poetas românticos e sua capacidade de criação e destruição.
E nenhum escritor romântico poderia empregar o arquétipo de Prometeu sem consciência das suas ambiguidades — pois a benevolência do Titã nunca foi recompensa bastante para a alienação do homem, a distância entre o homem e os céus, provocada por ele.
Prometeu é, às vezes, tomado como uma figura de Cristo; mas também é visto como um Lúcifer, o filho da luz renegado por sua ofensa. Todas as releituras românticas do "Paraíso Perdido" de Milton — entre as quais se soma, também, "Frankenstein" — farão desta dupla identidade de Prometeu um elemento vital.
Execrado, ao invés de amado, o monstro representa, mesmo assim, expressão total da força criativa de "Frankenstein" e tem mais imaginação do que seu criador. O monstro tem maiores virtudes intelectuais e afetivas do que seu inventor — ele ultrapassa o dr. Frankenstein tanto (e da mesma maneira) como Adão é maior que Deus, no "Paraíso Perdido". O maior paradoxo e a mais surpreendente realização do romance de Mary Shelley é que o monstro é mais humano de que o seu criador.
Isto sugere o que faz de "Frankenstein" um livro importante (embora cheio de falhas e marcado por uma certa falta de jeito): é o fato de que contém uma das versões mais vívidas da mitologia romântica da identidade, lembrando nisso o "Prometeu Liberado" de Shelley, o "Livro de Urizen" de Blake e o "Manfredo" de Byron, entre outras obras. "Frankenstein", justamente por ser menos sofisticado e menos complexo, serve de excelente introdução ao mundo dos românticos.
Segundo Muriel Spark, o romance pode ser lido como uma reação "contra o racionalismo de William Godwin e Shelley". De Caleb Williams (1794), de Godwin, Mary Shelley toma o grande tema da guerra do monstro contra "a maquinaria inteira da sociedade humana", mas reverte brilhantemente o sentido do romance do pai. A relação com Shelley envolve um diálogo com o "Hino à Beleza Intelectual" e "Mont Blanc", dois poemas escritos nos Alpes, no mesmo verão em que foi escrito o romance, e especialmente com "Prometeu Liberado".
Há dois paradoxos no centro do romance e cada um ilumina um dilema da imaginação prometéica. O primeiro é que o dr. Frankenstein foi mesmo bem-sucedido, na medida em que foi capaz de criar o Homem Natural, não como ele é, mas como os melioristas queriam que fossem. A tragédia de Frankenstein não vem do excesso, do impulso de Prometeu, mas de seu engano moral, sua incapacidade de amar. Execrando sua criatura, fica aterrorizado e escapa de suas responsabilidades.
O segundo paradoxo é mais irônico. A questão é saber por que Frankenstein não foi melhor sucedido esteticamente como criador (mas é verdade que um monstro bonito, ou ao menos passável, não seria um monstro, impedindo o romance de ser escrito). Não seria injusto caracterizar o dr. Frankenstein, em seu ato de criação, como, momentaneamente, um idiota da moralidade, como tantos outros que repetiram sua obra desde então. Pode-se detectar um certo humor involuntário no contraste entre a enormidade da descoberta científica e as emoções triviais do descobridor.
Percebendo que "a natureza diminuta das partes" tornavam-lhe mais difícil o trabalho, ele resolve fazer sua criatura "com mais ou menos 2,5 metros de altura e todas as partes proporcionalmente grandes". À medida em que trabalha, permite-se sonhar que "uma nova espécie me abençoará como sua fonte e criador, muitas naturezas felizes deverão sua existência a mim".
Mas quando se abre "o olho morto e amarelado" de sua criatura, o criador cai do alto de sua autonomia, como artífice supremo, até o terror de um simples filho do barro. Foge, então, à responsabilidade e põe em movimento a série de episódios que o levarão a seu sacrifício no Ártico, um final justo para um homem que nunca atingiu o sentido pleno da existência de outro.
O romance de Mary Shelley é assombrado, também, pela figura demoníaca do Velho Marinheiro de Coleridge, uma das maiores versões romântica de um "eu" isolado pela própria, exarcebada autoconsciência. O Marinheiro de Coleridge pertence à linhagem de Caim, e a ironia do destino do dr. Frankenstein é que ele também é um Caim, assassinando involuntariamente aos que ama, por intermédio de sua criatura.
Se nos distanciarmos um pouco do romance, para enxergar melhor sua forma arquetípica, o que veremos é a busca empreendida por uma consciência devastada e solitária: primeiro por consolo, depois por vingança e finalmente por uma autodestruição apocalíptica, capaz de levar consigo o seu criador. O tema principal do romance, então, é um contrapeso necessário ao impulso prometéico, que exalta sempre a consciência, a qualquer custo. Frankenstein rompe a barreira que separa o homem de Deus e cria, aparentemente, a vida; mas ao fazê-lo, não faz mais do que criar uma morte em vida.
O desalento profundo, que chega a ser endêmico no romance, é fundamental Ó mitologia romântica da identidade, pois todos os terrores do romantismo são doenças do excesso de consciência, do eu incapaz de sustentar o eu. Foi Kierkegaard quem escreveu que o desespero de Satã é absoluto, porque Satã, que é puro espírito, é pura consciência, e para ele (como para qualquer um na mesma condição) cada aumento na consciência é um aumento no desespero. A criatura desesperada do dr. Frankenstein sofre os tormentos de uma consciência tal que, para ela, cada novo pensamento é uma nova aflição.
Os poetas românticos lutavam contra a autoconsciência valendo-se da força do que chamavam de "imaginação", uma energia mais que racional, por meio da qual o pensamento pode se curar a si mesmo. Mas a criatura de "Frankenstein", embora na mesma situação arquetípica do Caminhante, ou Solitário romântico, não é capaz de escapar de sua história, ao contá-la. Seu desejo desesperado por um parceiro, ou parceira é claramente o desejo de encontrar para si mesmo o que Blake chamava de "Emanação", um outro eu dentro do eu. Mas ele é o pesadelo concretizado do desejo de Frankenstein; é, ele mesmo, uma emanação, e seu único duplo é o seu criador, que o renega.
Não existe uma forma de liberação prometéica,, mas a liberação talvez não seja, afinal, o maior peso das aspirações românticas. Há algo de Godwin e Shelley nas últimas palavras de Victor Frankenstein, dirigidas apropriadamente a Walton, um Prometeu fracassado, cujo navio acaba de dar a volta. O Prometeu Moderno, castigado, chega ao fim com uma palavra fiel não às suas realizações, mas ao seu desejo: "Adeus, Walton! Busca a felicidade na tranquilidade e evita a ambição, mesmo aquela, aparentemente inocente, de distinguir-se na ciência e nas descobertas. Mas por que digo isso? Eu mesmo vi-me arruinado nessas esperanças, mas algum outro pode ter melhor sucesso."
O tormento máximo do Prometeu de Shelley, crucificado num precipício de gelo, é o sarcasmo de uma das Fúrias: "E tudo o que há de melhor se dissolve em infortúnio." Parece um resumo adequado para todo o esforço dos Prometeus modernos e poderia servir de epígrafe para o perturbador romance de Mary Shelley.

Tradução de ARTHUR NESTROVSKI

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