São Paulo, domingo, 29 de janeiro de 1995
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O poeta do mundo sensível

NELSON ASCHER
NELSON ASCHER

Especial para Folha
Joseph (Jósif) Brodsky, poeta russo nascido em São Petersburgo (então ainda Leningrado) em 1940, expulso de seu país depois de alguns anos de trabalhos forçados, radicado nos EUA e Nobel de Literatura de 1987, não é um estranho para o público brasileiro. Seu processo, em meados dos anos 60, por "parasitismo social" (autor e tradutor free-lancer, não pertencia à união oficial dos escritores) causou sensação tanto pelo seu absoluto surrealismo quanto pelo recrudescimento que representava da repressão político-intelectual na URSS após a deposição de Khruschev. Parte de suas atas foi incorporada, na época, a uma peça de Millôr Fernandes. Recentemente, a Cia. das Letras publicou uma antologia de seus ensaios literários e memorialísticos.
Nos EUA, afiliou-se a uma verdadeira "internacional" informal que, entre exilados, dissidentes e opositores (o Nobel polonês de literatura Czeslaw Milosz, o atual presidente tcheco Vaclav Havel, o húngaro presidente do PEN internacional George Konrád etc.), reunia a nata da intelectualidade do leste europeu e vem, desde a derrocada do comunismo em 89, influenciando decisivamente os destinos da região. Escritor binacional, perfeitamente bilíngue, ele foi aceito também no "establishment" cultural americano representado por publicações como o "New York Review of Books".
Sua poesia testemunha peculiarmente essas vicissitudes: não com a melancolia de um desenraizado nostálgico da pátria perdida, mas com o apetite geográfico e a curiosidade de um viajante obrigado a assumir seu cosmopolitismo compulsório. Uma de suas coletâneas chama-se "Para Urânia" –a musa da geografia. Muitos de seus poemas se inspiram em ou recordam cidades e países visitados: "Noturno Lituano", "Divertimento Mexicano", "Dezembro em Florença". "O Tâmisa em Chelsea". Seu volume em prosa mais recente, escrito em inglês, "Watermark" (palavra que quer dizer filigrana, mas também a linha d'àgua e sua marca ou medida), recorda e medita sobre sua visitas a Veneza.
Estilisticamente, Brodsky seria um neoconservador e não é acidente que entre os anglo-americanos, mais do que Pound ou Williams, admire Robert Lowell, inspire-se em Robert Frost, seja amigo de Richard Wilbur e considere W.H. Auden (seu amigo e protetor) um ídolo. Mas o veredicto não é tão simples assim. Protegido, na juventude, de Ana Akhmátova, ele aprendeu muito de sua arte com a poesia de Marina Tzvietáieva e Ossip Mandelstam, filiando-se, portanto, à vertente que só pode ser considerada conservadora caso se ignore que entre esta e o cubofuturismo de Maiakóvski ou "Minha Irmã Vida" de Pasternák. Havia não antagonismo, mas complementaridade, influência e, sobretudo, admiração mútua.
Se ele escreve em formas fixas, seu metro em contrapartida é de uma rara flexibilidade, suas combinações estróficas são menos rígidas que virtuosísticas e sua maneira de rimar descende diretamente, como observou o crítico V.V. Ivánov, do próprio Maiakóvski. Seu poemas podem ser considerados discursivos e outro livro seu se intitula "Parte de uma Fala" (ou discurso).
Mas, além de percorrer em seus textos lugares onde está ou esteve antes, o poeta chega até mesmo a comprazer-se na descrição dos movimentos de uma mosca, tentando ver o mundo segundo a perspectiva temporal desse inseto de vida curta.
E o que vê nos seus poemas não é mero pretexto para reflexões vagas nem pretende ser, eliotianamente, um correlato objetivo da subjetividade. Pelo contrário, suas melhores observações (no sentido amplo) brotam diretamente do visto e do fisicamente experimentado, e seus versos registram frequentemente o nascimento de uma nova idéia ou constatação umbilicalmente vinculadas às ocasiões onde/quando foram gestadas.
Um dos prazeres centrais da poesia brodskyana é a transformação imperceptível da observação em reflexão e desta em constatação, ou seja, ela desempenha o papel de uma membrana osmótica na qual o trânsito de mão dupla entre o objetivo e o subjetivo se torna inteligível. Assim, diante das pirâmides do istmo de Tchuantepee, ele diz: "Espero que sejam mesmo obra de visitantes alienígenas7 pois essa coisas são normalmente erguidas apenas por escravos."
Os poemas traduzidos, embora mais breves do que a média do que escreve, representam suas várias fases e épocas, suas diversas preocupações e seus distintos modos de abordá-las. "Odisseu a Telêmaco", por exemplo, lança mão de recursos semelhantes aos de um de seus poetas favoritos, Konstantinos Kaváfis. Mas a ironia do russo difere da do grego alexandrino. A única ilha na "Odisséia" onde há uma rainha é a própria Ítaca natal à qual Odisseu retorna. Mais do que ninguém, ele saberia também que Édipo havia passado tanto tempo longe de seu pai biológico quanto Telêmaco –e isso apenas favorecera o desfecho trágico. Odisseu não estaria, portanto, de volta já ao seu lar, fazendo-se de desmemoriado para sondar e dirimir as intenções parricidas de seu próprio filho?
Além de escrever poemas diretamente na língua de adoção e traduzir sozinho muitos outros, Brodsky colaborou ativamente com seus tradutores em duas antologias, "A Part of Speech" e "To Urania", estabelecendo padrões que fazem dele o poeta russo vivo representado pelo melhor conjunto de traduções para o inglês. Esses padrões foram mantidos, pelo menos, em duas antologias francesas e uma italiana, de modo que, aos 54 anos, este exilado, vítima de um regime defunto, é hoje sem dúvida um dos mais internacionalmente reconhecidos dentre os poetas contemporâneos.

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