São Paulo, domingo, 29 de janeiro de 1995
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Miguel Torga, o orfeu rebelde

VILMA ARÊAS
ESPECIAL PARA A FOLHA

Talvez nada assinale mais claramente a distância entre Brasil e Portugal do ponto de vista literário, hoje, que a inexistência dos livros de Torga em nossas livrarias. Longe vai o tempo em que, saído das prisões da PIDE, teve ele um livro proibido que entretanto conheceu grande êxito entre nós. Agora, quase nada encontrei de uma obra torrencial, cujos títulos, traduzidos em muitos idiomas, já ultrapassaram os 400 mil exemplares; suas últimas tiragens foram de 50 mil cada, sempre pagas do próprio bolso, afastadas do batismo da mídia e impressas na gráfica do padre Valentim em Coimbra, "porque ficam 30% mais baratas" e "livro tem de ser barato", segundo ele.
Por isso também sempre recusou os convites e o luxo das edições Aguilar.
No entanto, a situação de Miguel Torga em Portugal não escapa dos capítulos das contradições. De um lado, o sentimento de desastre pelo seu recente desaparecimento, como se esse homem de 87 anos fosse tão eterno (eu também achava que fosse) quanto a paisagem de fragas que cantou e palmilhou. Afirmava que tinha uma vocação contrariada de vagabundo e cultivava-se, como dizia, "pelos olhos e pelos pés, no alfabetismo íntimo das cousas".
Por outro lado, não há quem não se queixe da falta de estudos detidos sobre sua obra. Entretanto, sua obstinação pelo trabalho literário, seu infindável corpo-a-corpo com as palavras deviam-nos fazer desconfiar do que se convencionou chamar de "expressão direta" de seus textos, confundidos talvez com ingenuidade, e não como dicção exata que se realiza em seus melhores momentos numa recusa da retórica convencional.
Comecemos entretanto pelo homem, embora falar de Torga em muitas ou poucas palavras seja tão difícil quanto "procurar no dicionário da memória uma palavra onde pudesse caber a serra do Roboredo" ( Diário-X). O cidadão português, nascido em 1907 em Trás-os-Montes, chamava-se Adolfo Correia da Rocha. O pseudônimo que conhecemos foi inventado numa homenagem a três Miguéis (de Molinos, de Cervantes e de Unamuno) a que ajuntou Torga, isto é, uma espécie de urze ou flor silvestre que nasce nos lugares mais inesperados, comum em sua região. Na invenção do nome a paixão pela literatura, a confissão de pertencer ao que chamava de "pátria telúrica", isto é, peninsular, e a fidelidade à raiz camponesa.
Neto e filho de almocreves numa das regiões mais pobres do país, foi "criado de servir" no Porto e aos 13 anos emigrou sozinho para o Brasil, onde permaneceu até os 18, no duro trabalho agrícola.
Anos depois, numa visita à mesma fazenda cujo chão "ensopara de lágrimas" na infância, percebe que esses "safanões emotivos" o impediam para sempre de organizar uma visão analítica e serena de nosso país ( Diário-VII). Ajudado por um tio, de volta a Portugal termina em três anos os sete do liceu, e cinco anos depois conclui o curso de Medicina na Universidade de Coimbra. Clinicou quase até as vésperas de morrer. Mas o tempo universitário o fizera também entrar em contato com literatos e idéias revolucionárias, pois sempre foi um socialista com uma desconfiança visceral de qualquer tipo de poder. ("Aqui, diante de mim,/ Eu, pecador, me confesso/ De ser assim/ Como sou").
Desse modo nunca conseguiu ajustar-se a grupos por muito tempo. Foi o que aconteceu quando participou, ao lado de Gaspar Simões, José Régio, Casais Monteiro, etc, da revista "Presença", de importância capital na difusão do modernismo português. Torga rompeu com eles porque a "consciência que eles tinham de serem únicos distanciava-os do vulgo", em 30 fundou outra revista que só durou um número e de 36 a 37, outra –"Manifesto".
D o ponto de vista político, sua atuação confirma o mesmo perfil. Em 1939, após publicar "O Quarto Dia" de "A Criação do Mundo", foi detido pela PIDE, teve livros proibidos e apreendidos, passou meses nos cárceres de Aljube –onde escreveu versos sobre a liberdade–, testemunhou no tribunal a favor de outros presos.
Antes do 25 de abril percorreu, solidário, os atuais países africanos em guerra pela independência, mas após a revolução portuguesa não quis tirar partido dos anos de luta, suspeitou do "clamor demagógico de mil vozes" e desceu à praça pública "a pugnar por um socialismo fraterno de raiz anarquista".
Nada mais natural que essas características se reflitam numa obra problemática, ao mesmo tempo intuitiva e cerebral, dividida entre a busca da individualidade e a partilha de um destino comum, almejando a um universal só alcançado "após o mergulho absoluto no particular". Desse ponto de vista a crítica maior que faz à literatura portuguesa atual é a ausência de raízes, sem "a marca da personalidade do criador": objetos sem tradição, que se parecem entre si e não se parecem com coisa alguma.
Nada portanto mais distante do que se chama pós-modernismo ou cultura da indiferença. Seu autor também não troca a conhecida solidão pelo glamour dos escritores de sucesso.
Ao contrário, essa obra multifacetada –poesia, romance, teatro, ensaio, conto– tem forte conotação ética e exemplar, jamais semelha "pedradas irresponsáveis às vidraças do tempo", é alérgica ao puro lúdico ou à gratuidade. Tem, isso sim, um tônus constante em que a expressão comum constrói uma epopéia do humilde, se podemos dizer assim, com seus heróis camponeses.
"O meu conceito de herói não é representado por Vasco da Gama/ .../ é um homem vulgar com tanta humildade que alcança a heroicidade e a universalidade". (Entrevista ao "Jornal de Letras", Lisboa, 1988).
O Diário" - VII já afirmara que em Portugal os civilizados são na verdade os analfabetos. "Mal largamos o enxadão e subimos um degrau na escala social, corrompe-nos não sei que lepra, que já não há simplicidade possível, nem grandeza correspondente.
Esperamos que a morte de Miguel Torga inspire o repensar dessa obra sob muitos aspectos clássica e longe dos modismos literários.
Ainda é dele a palavra mais justa sobre ele mesmo:
"Deixo cair a tarde
Nos olhos fatigados.
O dia foi de luz intensa e demorada,
Nevada nas alturas.
................
Longe daqui, e sempre aqui
Presente,
Quero sonhar apenas o que vi.
Quero ver o que vi mais transparente".
("Diário" - 10)

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