São Paulo, domingo, 29 de janeiro de 1995
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Um imigrante na terra da utopia

SERGIO LEONE

Ao lado de outros troféus recolhidos durante um longo safári cinematográfico, eu conservo na parede de meu escritório a fotografia emoldurada que meu amigo John Ford quis me dar antes de morrer. Nela, vê-se o grande cineasta em roupas muito grandes para seu tamanho, como se a idade o tivesse ressecado.
Ele traz um cigarro à boca e ostenta uma careta rude de sargento-major, como a bandeira gloriosa de um regimento. Além disso, na fotografia, há uma bela dedicatória com sua letra pequena e apertada: "Para Sergio Leoni. With admiration. John Ford." Não Leone, mas Leoni. O diretor de "No Tempo das Diligências" e de "Paixão dos Fortes" devia, sem dúvida, me chamar assim. Em suma, John Ford, o Homero da Sétima Cavalaria e das amizades viris, havia me multiplicado por dois, pelo menos. Foi muita gentileza sua, realmente. Devo confessar que coloquei esta foto com dedicatória bem à vista. Porque ela me deixa tão orgulhoso quanto o garotinho que conseguiu derrubar todos os bonecos, todos os pinguins de plástico e todos os maços de cigarro de um tiro ao alvo de feira.
Eu sou sensível aos cumprimentos. Como todo mundo. Contudo, no trabalho que faço, a admiração de John Ford me honra mais que qualquer outra demonstração de amizade ou de estima. Ocorre que o velho irlandês é um desses raros cineastas que merecem ser chamados de "mestre" no domínio do cinema, onde os tambores da publicidade e da crítica a mais impressionável extasiam-se, por razões falsas, ao menos três vezes por semana. Como o soldado de um de seus filmes que ganha patentes e medalhas pelo combate, Ford conquistou este direito ao longo da guerra civil do celulóide e nos melancólicos acampamentos hollywoodianos.
Seu cinema tão singular e ingênuo, tão humano e digno, deixou uma marca indelével em todo o cinema posterior. Começando pelo meu. Por exemplo, agrada-me pensar que o personagem glacial de Henry Fonda em "Era Uma Vez no Oeste" (1968, filme de Leone) não é outro senão o filho legítimo, mesmo se ele é diabólico e monstruoso, da intuição que teve John Ford em "Sangue de Heróis": um coronel abjeto e autoritário que viola todas as regras morais e escarnece dos tratados com os índios, a ponto de conduzir seus homens à destruição no Vale da Morte. Um dia, Ford disse: "O melhor cinema é aquele em que a ação é longa e os diálogos breves". Penso a mesma coisa: esta vai para os colecionadores de similitudes que me estão lendo.
Desde o início dos anos 30, John Ford havia se recusado a rodar em estúdio, preferindo instalar sua câmera a céu aberto. Ele soube transformar seus assuntos de westerns, fazendo daquelas pequenas histórias edificantes parábolas de grande envergadura. Desta forma, ele foi um dos mais autênticos pioneiros do realismo cinematográfico moderno. É também por isso que eu me declaro seu aluno.
Ele rodou filmes cheios de verdade, com um realismo que acabou por se perder como arte, depois dos raros vôos no tempo do mudo. Nós não conheceríamos nem mesmo esta montanha perfeita e fabulosa para o cinema épico que é Monument Valley, ainda presente em "Easy Rider", e sempre boa para os OVNIs de Steven Spielberg, se John Ford não a tivesse descoberto, com um olhar que via longe, quando de suas temporadas míticas nas reservas indígenas.
Ele foi também o primeiro a nos revelar que os verdadeiros caubóis do Oeste americano não vadiavam vestidos de negro sobre cavalos brancos, dedilhando as cordas de um banjo e piscando os cílios como gigolôs à maneira de Tom Mix e Hopalong Cassidy nos prostíbulos patéticos daqueles anos. Os longos casacos empoeirados e ensebados dos irmãos Earp na abertura de "Paixão dos Fortes", o movimento das nuvens esbranquiçadas sobre as cavalgadas de soldados azuis, John Wayne, desalinhado e coberto de poeira, parando a diligência de "No Tempo das Diligências", acampamentos indígenas que não imitavam cartões-postais...
Tantos caminhos sem volta para o western, mas também para o cinema que, naquela época, corria realmente o risco de apodrecer na assepsia confortável dos estúdios californianos, desinfetados como quartos de hospital. Que essa revolução do instrumento cinematográfico tenha sido a obra não de um intelectual refinado ou de um técnico genial, mas de um homem simples, a mil léguas de todo formalismo, é extraordinário.
Faço igualmente minha esta outra máxima de John Ford: "Eu adoro fazer filmes e não ouso falar deles". Todavia, eu posso garantir que, em meus westerns, os personagens fortemente coloridos sobre horizontes longínquos, mesmo se eles são mais cruéis e certamente menos inocentes e encantados que os dele, devem muito a suas lições formais. Mesmo se isso é involuntário. Eu não poderia jamais filmar "Era Uma Vez no Oeste" e até "Três Homens em Conflito" (1966), se, criança que eu era, não tivesse visto os desertos do Arizona, as cidades de madeira que John Ford mostrava em uma luz pura e surpreendente.
Uma coisa é certa: as imagens e as histórias, em seus filmes, não envelhecerão jamais. E daqui a dez anos, nós não iremos nos reunir para chorar a morte delas. Eu o digo sem retórica. Elas permanecem vivas e brilhantes, transparentes e reais, diversas daquelas, artificiais, falsas, de boa parte dos filmes feitos à época. Basta comparar "As Vinhas da Ira" com "E o Vento Levou..." para compreender isto. Não existe erro possível, aqui.
Mas atenção! O realismo de Ford não era absoluto como era –ou tentava ser– o naturalismo do filme de gângster. De fato, este imigrante irlandês era um poeta e não um cronista. A verdadeira força de seus filmes, nós a encontramos sobretudo na potente nostalgia de um mundo de fronteiras irremediavelmente perdidas e sobretudo na sua idéia visionária de América, que emanava de cada fotograma. Uma outra vez, ele disse: "Eu venho do proletariado. Minha família é de origem camponesa. Ela veio para cá e eles receberam instrução. Eles mereceram este país. Eu amo a América."
A América da qual ele falava não era aquela dos guetos, da miséria urbana, nem mesmo a das lutas sindicais. Era a América fabulosa onde ele tinha trabalhado como ator nos filmes de Griffith; a América fabulosa que lhe tinha aberto todas as grandes portas de Hollywood para suas primeiras realizações em cinema. Ele tinha 19 anos. Como Frank Capra, um outro grande imigrante aceito de imediato pelo cinema, John Ford considerava a América como uma terra da utopia onde, há muito tempo atrás, tinha-se feito uma promessa de liberdade, de paz, de aventura e de pão. Promessa que ninguém mais havia esquecido. Para ele, sem dúvida alguma, a promessa foi mantida até o fim.
De resto, você já reparou que os heróis fordianos não são nunca individualistas ou solitários? Ao contrário, eles são sempre homens profundamente enraizados na sua comunidade, exatamente como imigrantes irlandeses, satisfeitos com sua nova situação. O realizador de "As Vinhas da Ira" e de "Caravana de Bravos", cavalgando à frente de sua esplêndida equipe de atores, de tipos, todos irlandeses, solidários entre si, não poderia jamais rodar "Matar ou Morrer" (1952, de Fred Zinnemann) ou "Por um Punhado de Dólares" (1964, de Sergio Leone). Os personagens que mais se assemelham a ele não são os soldados azuis, mas aqueles que, como John Wayne em "Depois do Vendaval" ou James Stewart em "O Homem que Matou o Facínora", procuram simplesmente um teto sob o qual viver em paz, ao abrigo da lei, com bons vizinhos para conversar e beber um copo depois da missa.
Claro, sua América era uma terra da utopia, mas da utopia irlandesa! Quer dizer, profundamente católica, com um misto de piedade e de camaradagem franca. E muito humor, mas sem ironia, e sobretudo sem crueldade. Eu sei que minha visão da América é bem outra. E que eu sempre enxerguei o reverso do dólar, seu lado oculto, mais que o lado exposto. Mas é justamente o Oeste solar e humanista de John Ford que me guiou em meu caminho até o última filmagem de "Quando Explode a Vingança" (1971, filme de Leone), nas áridas pradarias do cinema.
E, agora, olhando de novo sua foto com dedicatória, bem à vista em meu escritório, com os outros troféus, eu vejo o velho cineasta responder ao meu olhar com tanta inocência e candura que quase tenho vergonha, eu digo quase, de ter revolvido todas as pedras das paredes, certo de ver surgir dali apenas escorpiões e cascavéis. Porque se John Ford professava sua admiração por "Leoni", "Leoni" não cansa nunca de olhá-lo com respeito, inveja e deferência.
Enfim, para "Leoni" como para John Ford, rodar um western sempre foi uma distração. Sim. Eu parto com a equipe, e durante semanas e semanas, não dou a mínima para tudo o mais.

O texto acima é um extrato de depoimento publicado no livro "Conversations avec Sergio Leone", de Noel Simsolo. O livro pode ser encomendado à Livraria Francesa (r. Barão de Itapetininga, 275, fundos, tel. 011 231-4555)

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