São Paulo, domingo, 29 de janeiro de 1995
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O HOMEM QUE INVENTOU A AMÉRICA

SÉRGIO AUGUSTO
DA SUCURSAL DO RIO

Meu nome é John Ford. Eu faço westerns".
Mais de uma vez ele se apresentou desse jeito. Mais de uma vez, também, ressalvou: Não fiz tantos westerns assim. Ao todo 54, 40% de sua filmografia. Mas foi, enfim, como o maior diretor de westerns de todos os tempos que ele entrou para a história do cinema –reputação nada modesta se aceitarmos a ossificada tese de que o bangue-bangue é o cinema americano por excelência.
Pelo que Ford nos legou, contudo, ela é modesta. Pois ele não se limitou a reinventar o western, com No Tempo das Diligências, e vez por outra alçá-lo às raias do sublime, nas décadas seguintes. Em sua longa e prolífica carreira, aventurou-se em quase todos os gêneros de filme, alguns dos quais premiados com pelo menos uma obra-prima.
Ninguém fez melhor síntese do cinema mudo com o falado. Ninguém sabia contar com mais competência, emoção e singeleza uma história. Qualquer história. Geralmente envolvendo problemas de família, terra, justiça e sacrifício, onde quase sempre cabia uma cena de dança, festa, bebedeira, briga, morte, parto, enterro, casamento, julgamento, banquete, corrida, cerimônias de guerra e paz. É o que mais costuma marcar a vida de uma comunidade.
Seu humor irreverente esnobava os limites entre o trágico e o ridículo. Como tantos outros artistas católicos, fez do paradoxo uma virtude, talvez porque, a exemplo do também católico Chesterton, acreditasse ser o paradoxo a verdade que vira de ponta-cabeça para chamar atenção. Também paradoxal era o seu método de trabalho, ao mesmo tempo tenso e descontraído, espontâneo e rigoroso. Inventava biografias para os seus personagens, listando seus gostos, suas opiniões e excentricidades, para que pudessem ter mais vida e coerência diante das câmeras.
Já o compararam a Shakespeare, até mesmo a Tácito, Balzac, Bach, Beethoven, Caravaggio, Vermeer e Delacroix. Um de seus mais antigos admiradores, Lindsay Anderson, não faz por menos: Os filmes de Ford só tem um equivalente literário, a prosa bíblica.
Surpreendendo a todos, Jean-Marie Straub definiu Ford como o mais brechtiano dos cineastas, diagnóstico aparentemente absurdo na medida em que jamais passou pela cabeça de Ford distanciar a platéia dos seus filmes. Motivo pelo qual pouco mexia a câmera, evitava close-ups (os de Linda Darnell, em Paixão dos Fortes, por exemplo, foram inseridos à sua revelia pelo chefão da Fox, Darryl F. Zanuck) e jamais deixou de praticar o que André Bazin chamava de montagem invisível.
Esqueceram do parâmetro principal, o autor da Ilíada e da Odisséia. Ford foi, acima de tudo, o Homero do cinema, o mais vigoroso trovador de mitos cinematográficos. Os deuses estavam com segundas intenções quando o fizeram nascer justo no ano da invenção do cinema.
Há quem diga que, na verdade, ele nasceu um ano antes, em 1894. Sempre disseram muitas e contraditórias coisas a seu respeito, e ele próprio não movia uma palha para esclarecê-las. Ao contrário, parecia divertir-se com os mistérios que a seu respeito se acumulavam, não se furtando a alimentá-los com outros de sua lavra. Até seu nome gerou controvérsias. Não tanto o Sean, que é a forma irlandesa (ou gaélica) de John, mas o sobrenome, ora Martin Feeney, ora Augustine Feeney, ora Aloysius O'Feeney.
Ele não é nada disso que a maioria das pessoas pensa, disse Henry Fonda. E nada daquilo, acrescentou. Como toda blague, tinha um fundo de verdade. Personalidade múltipla e complexa, Ford não era nem conservador nem anarquista, nem reacionário nem racista, nem militarista nem machista. Declarava-se um democrata socialista ( sempre à esquerda) em 1936, quando contribuiu com US$ 1 mil para a compra de ambulâncias para os legalistas da Guerra Civil espanhola. Em 1964, quando se recusou a votar para presidente (detestava os dois candidatos: Lyndon Johnson e Barry Goldwater), já se definia como democrata liberal. Com a ressalva: Mais do que qualquer coisa, sou um rebelde.
Rebelou-se contra a hipocrisia e os preconceitos, contra a intolerância e a violência. Foi o primeiro dos grandes de Hollywood a erguer a voz contra a caça às bruxas desencadeada pelo macarthismo. Seus filmes, se vistos e analisados com a devida sutileza, são um testemunho inequívoco dessa rebeldia. Todos eles defendem, no fundo, uma única idéia: a tolerância como apanágio fundamental de qualquer agrupamento humano. Alguns dos filmes anti-racistas mais emocionantes que Hollywood já produziu ( O Sol Brilha na Imensidade, Rastros de Ódio, O Último Hurra, Audazes e Malditos, Terra Bruta) trazem a sua assinatura.
O crítico Andrew Sarris desconfia que Ford não passaria de uma nota de rodapé na história do cinema se tivesse morrido em 1928. Até então só fizera filmes na melhor das hipóteses curiosos. Seu turning point teria sido um drama de guerra (a Primeira Mundial) rodado no que sobrara dos cenários de Aurora, de Murnau. Não por acaso, portanto, Ford descobriu o expressionismo alemão em Quatro Filhos. E o adaptou ao seu estilo: cenários estilizados e dramaticamente ativos, sim – travellings em abundância, não. Com o mais expressionista de seus filmes, O Delator, conquistou a crítica e seu primeiro Oscar.
Meu nome é John Ford. Eu contei nos meus filmes toda a história da América. Era assim que ele devia se apresentar.

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