São Paulo, terça-feira, 31 de janeiro de 1995
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Barreto diz que Chatô foi sua melhor escola

ALCINO LEITE NETO
ENVIADO ESPECIAL A CAXIAS DO SUL (RS)

Luís Carlos Barreto Borges, 66, dirigiu só um filme: "Isto É Pelé", em 1974. Mas é a ele que o cinema brasileiro deve boa parte de sua existência.
Barreto é um produtor de cinema –figura que nos Estados Unidos recebe o Oscar de Melhor Filme junto com o diretor, mas no Brasil é confundida com o sujeito que paga as contas no banco.
É com ele, um produtor –o profissional que viabiliza a existência e a carreira dos filmes–, que a Folha inicia uma série de entrevistas históricas em comemoração aos cem anos do cinema (leia box abaixo).
O cearense Barreto (nascido em Sobral, em 20 de maio de 1928) atravessa várias fases de sua vida no depoimento a seguir. Fala da infância, da sua passagem pelo Flamengo e de sua convivência com Assis Chateaubriand, de quem foi um dos principais fotógrafos na revista "O Cruzeiro".
Conta como conheceu Glauber Rocha e como ajudou a criar o Cinema Novo, o movimento que revolucionou a linguagem do filme brasileiro nos anos 60.
Diz que não ficou rico com o cinema e se defende das acusações de que tem militado apenas em prol do clã Barreto, de onde saíram os diretores Bruno e Fábio.
São mais de 30 anos de cinema brasileiro, desde a produção de "O Assalto ao Trem Pagador" (de Roberto Farias, 1961) até "O Quatrilho", de Fábio Barreto, que está sendo filmado com Glória Pires e Patrícia Pillar na região de Caxias do Sul (RS), onde foi feita a entrevista.
Entre um e outro filme, o Barreto-produtor é o ponto comum de mais de 65 longas e curtas brasileiros, entre eles "O Padre e a Moça" (de Joaquim Pedro de Andrade, 1965), "Terra em Transe" (de Glauber Rocha, 1966), "Dona Flor e Seus Dois Maridos" (de Bruno Barreto, 1975) e "Bye Bye Brasil" (de Cacá Diegues, 1979).

Folha - O sr. vem de uma família rica?
Luís Carlos Barreto Borges - Não, meu pai era apenas um comerciante de gêneros alimentícios, vendia produtos do interior no mercado de Fortaleza. Depois, tornou-se empreiteiro de estradas e foi numa dessas empreitadas que ele sumiu da minha vida, quando eu tinha 3 anos, e nunca mais tive notícia. Minha mãe teve que abrir uma pensão em Fortaleza para sustentar a família de 11 filhos, da qual eu sou o caçula.
Folha - Seu pai sumiu como?
Barreto - Não se sabe. Ele saiu com meu irmão para fazer uma estrada na Bahia e desapareceu. O meu irmão só veio a aparecer uns dez anos depois, preso, perto de Florianópolis. Era uma época de grande repressão política e ele tinha sido acusado de subversão.
Folha - Seu irmão não soube explicar o desaparecimento de seu pai?
Barreto - Não soube. Disse apenas que tinha se separado de meu pai e nunca mais o vira. Nós nunca procuramos saber realmente o que aconteceu.
Folha - O sr. tentou fazer cinema em Fortaleza?
Barreto - Não, porque eu comecei cedo em jornalismo, com 15, 16 anos, em "O Democrata", um jornal que pertencia a um senador cearense. Eu era revisor.
Quando o jornal foi adquirido pelo Partido Comunista, passei a repórter e, embora não fosse muito usado na época, sempre procurava fotografar as minhas matérias.
Folha - O sr. era comunista?
Barreto - Era da Juventude Comunista e fiquei na militância do partido dentro do jornal.
Folha - Por que o sr. se mudou para o Rio?
Barreto - Porque o partido foi posto na ilegalidade em 45 e a família achou melhor eu me proteger. Cheguei no Rio em 47 com um objetivo: jogar no Flamengo.
Consegui, entrei para o time e só larguei quando fui servir o Exército e também porque o time não me pagava, embora eu estivesse semiprofissionalizado. Um dia, fiquei de cabeça quente, fui ao clube e urinei dentro de todos os troféus, de vingança.
Assim, voltei ao jornalismo. Trabalhei em "A Cigarra" e depois fui para "O Cruzeiro". Eram revistas do mesmo grupo. No "Cruzeiro", que era a TV Globo da época e chegou a tirar 750 mil exemplares, eu escrevia e fotografava e fui tomando muito gosto por isso, a ponto de me interessar mais pelo trabalho visual.
Como ensinamento de vida, as melhores escolas que eu tive foram "O Cruzeiro" e a convivência com Assis Chateaubriand, proprietário da revista.
Folha - O que o Chateaubriand ensinou ao sr.?
Barreto - Ele era um intelectual da pesada, não um intelectualzinho. Ao mesmo tempo, tinha um enraizamento cultural muito grande. Não era daqueles que acumulam cultura e se despregam da sua cultura original.
Uma vez, ele me disse uma coisa que, acho, foi toda a sua filosofia de vida: "Meu filho, o que eu mais detesto na vida são os pudores e as virtudes, porque é isto que conduz à hipocrisia, e a hipocrisia é o câncer da alma humana".
O que hoje muitos fazem por debaixo da mesa ele fazia escancaradamente. Se tivesse que ir lá peitar um cara e tomar uma grana para comprar um quadro ou mandar fazer mais um avião, ele fazia isso. Não tinha nenhum pudor.
Muitas vezes prejudicava as próprias empresas para servir a uma idéia de interesse público. Eu convivi muito tempo com ele, quase 15 anos, estabelecemos um laço afetivo muito forte.
Folha - Como o de um pai e o de um filho?
Barreto - Talvez, mas não conscientemente. Um pai que some da vida do filho aos 3 anos deve deixar uma lacuna grande. Mas o Chateaubriand era tão pouco austero que, quando viajávamos, eu me sentia em dupla.
Nunca percebi uma atitude de exercício de autoridade, e minha admiração por ele era sobretudo intelectual. Nas viagens, inclusive, ele fazia questão que ficássemos na mesma suíte. Eu dizia: "Mas dr. Assis..." Ele falava: "Eu sei que eu ronco muito, mas..."
Folha - E ele roncava muito?
Barreto - Muito. A primeira vez que viajamos foi muito constrangedor, porque ele, em determinado momento, se trancou no banheiro e saiu de lá com um camisolão e uma toca amarrada na boca. Parecia a ilustração do Lobo Mau dos "Três Porquinhos".
Aí, eu comecei a rir, ele percebeu e disse: "Meu filho, eu sei que eu estou ridículo, mas tenho que dormir assim; o médico me disse para não me deitar de boca aberta. Ataca as amígdalas".
Folha - Quando o sr. encontrou Glauber Rocha pela primeira vez?
Barreto - Foi em 1961. Eu tinha ido à Bahia fotografar para "O Cruzeiro" duas senhoras da sociedade baiana e meu amigo Genaro de Carvalho foi quem me falou do Glauber. Fui até Buraquinho, onde ele estava filmando "Barravento", e fotografei algumas cenas do filme, com as atrizes Luiza Maranhão e Helena Ignês. O Glauber colocou a mão no meu ombro e saímos andando pela praia. Ele falava aos borbotões: "O cinema brasileiro e tal, etc etc..."
Quando cheguei no Rio, mandei revelar o material fotográfico. Naquela época, "O Cruzeiro" só publicava foto de artista de Hollywood. A capa vinha pronta de Hollywood: um cromo enorme, para o crítico de cinema.
Aí, eu cheguei para o José Amádio, que era chefe de redação, e disse: "Olha, eu tenho aqui essa negra lindíssima, que é a Luiza Maranhão, e essa loura deslumbrante, que é a Helena Ignês, e nós temos que fazer uma capa com elas. Vamos peitar isso". Saiu a capa, com uma reportagem dentro. Foi uma revolução no "Cruzeiro".
Folha - O que o Chateaubriand achou disso?
Barreto - Ele adorou. Eu costumo dizer que o Brasil teve uma encruzilhada: foi no momento em que deixamos de ter o boa-noite da TV Tupi, com a canção de ninar do Caymmi, aquela do "boi da cara preta...", que o Chateaubriand fazia questão que entrasse, e passamos a ter o "plim-plim" da Globo, o sinal eletrônico.
Nisso, eu simbolizo a mudança do psicossocial do Brasil. Foi a falsa modernidade que se instalou. Não é uma visão apocalíptica, mas acho que é muito simbólico do que aconteceu depois. Foi um código que se perdeu.

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Sobre Luís Carlos Barreto à pág. 5-8

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