São Paulo, terça-feira, 31 de janeiro de 1995
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'Nunca faltou técnica ao cinema brasileiro'

ALCINO LEITE NETO
DO ENVIADO ESPECIAL A CAXIAS DO SUL (RS)

A seguir, o produtor Luís Carlos Barreto defende que o cinema brasileiro sempre teve recursos técnicos e que a "pobreza" do Cinema Novo foi uma opção estética. Fala também da relação dos cinemanovistas com o regime militar e conta que o trabalho em cinema não o transformou em um homem rico: "Ao contrário", diz.

Folha - O efeito da capa de "O Cruzeiro" com a foto de "Barravento" deve ter sido muito estimulante para o Cinema Novo, que começava a surgir naquele momento.
Barreto - Foi. O Glauber ficou muito mobilizado e me escreveu uma carta: "Isso marca um novo tempo, quebramos a hegemonia de Hollywood". E veio para o Rio.
Um dia, chegou lá em casa e me disse: "Você tem que fazer um roteiro do assalto ao trem pagador". Era um episódio criminal famoso da época. Acabei escrevendo o roteiro com o Roberto Farias.
Então, encontro o Otto Lara Resende, que me diz: "Soube que você está fazendo um filme sobre o assalto ao trem pagador. Eu tenho um amigo que é doido por essa história e ele quer financiar".
Era o José Luis Magalhães Lins, diretor do Banco Nacional de Minas Gerais, de propriedade do Magalhães Pinto.
Folha - Um banqueiro queria financiar o filme do assalto.
Barreto - É, ele era maníaco pela história e resolveu financiar. Entrou com uma parte e o Herbert Richers com outra –com estúdio, câmera e tudo o mais. O filme teve um sucesso muito grande. Pagamos o banco com facilidade incrível. Disseram: "Esse negócio de cinema é muito bom". E assim começou a parceria do Banco Nacional com o Cinema Novo.
Folha - Como o sr. se envolveu com a fotografia de "Vidas Secas"?
Barreto - Mais uma vez foi o Glauber, que cismou que eu deveria fotografar o filme do Nélson Pereira dos Santos. Eu disse: "Isso é loucura, Glauber, eu sou fotógrafo jornalístico, não sei fazer cinema". Ele insistiu e começou a me contar o filme.
Na versão dele, "Vidas Secas" era um faroeste extraordinário: "Aí, o Fabiano pega o facão e parte para cima do soldado amarelo..." Eu fiquei entusiasmado e o Nélson Pereira, na loucura, topou.
Folha - Essa fotografia praticamente revolucionou o que então se fazia no cinema brasileiro. Foi uma coisa preconcebida?
Barreto - De certo modo. O Sol do Nordeste era sempre fotografado do mesmo modo, com aqueles nuvens, o estilo Jean Mazon. Eu falei com o Nelson que, se fizéssemos a fotografia convencional, o filme correria o risco de parecer um passeio num jardim. Eu tinha uma concepção baseada na minha experiência de fotógrafo jornalístico, eu nunca fotografei com filtro, não gostava, nem dava tempo. Disse ao Nelson: "Tem que ser uma fotografia crua, sem filtros, sombra é sombra, luz é luz".
Folha - O que o sr. acha que seria uma fotografia inovadora hoje no cinema?
Barreto - Não é tanto uma inovação, mas uma dessacralização da fotografia o que precisamos. O Nestor Almendros, que para mim é o maior fotógrafo dos tempos modernos, me dizia: "Eu não entendo porque os filmes estão cada vez mais sensíveis e cada vez se usa mais luz". Eu sinto que é o momento de se despojar de novo, acreditar mais na película e usar mais a luz de Deus.
Folha - Uma das análises sobre o Cinema Novo diz que seus diretores, não possuindo recursos técnicos nem conhecimento cinematográfico suficiente, forjaram uma linguagem a partir da precariedade material. Mas parece-me que havia muitos recursos, havia os estúdios Herbert Richers, técnicos e equipamentos da Atlântida... A chamada "pobreza material" do Cinema Novo foi uma opção estética ou uma realidade?
Barreto - Você tem razão. O cinema brasileiro sempre teve recursos técnicos. A Vera Cruz, por exemplo, tinhas as grandes câmeras, os grandes refletores. O Herbert Richers tinha um parque de equipamento fantástico.
Além disso, havia muitos bons técnicos. "Vidas Secas" teve um ótimo cameraman, José Rosa, sobrinho do fotógrafo Edgard Brasil, e poderia ter tido tudo que se quisesse. Foi uma opção usar o despojamento como linguagem. Não era falta de recursos.
A única área em que ficávamos para trás era a montagem. As montadoras eram pré-históricas. Mas o que estava em questão na época era o uso das câmeras mais leves, dos sons mais diretos, de falsear o menos possível a realidade. Foi realmente uma escolha estética.
Folha - O sr. acha que, hoje, essa opção estética ainda tem alguma validade? Parece que atualmente predomina a idéia do acabamento técnico standard.
Barreto - Eu acho que muitas coisas que foram adotadas como opção estética no Cinema Novo foram incorporadas. A primeira função do Cinema Novo foi ocupar um espaço junto à "inteligência" brasileira e, através dela, da mídia e da opinião pública.
O cinema brasileiro vinha do cinema popular, da chanchada etc, que eram extremamente combatidos pelos meios de comunicação. As poucas tentativas de se fazer um cinema mais cuidado tinham ranços de imitação de Hollywood, como na Vera Cruz. E a chanchada tinha sido transportada para a TV.
Então, havia um espaço a ser ocupado. E isso foi feito, inclusive com o reconhecimento internacional, que ajudou muito o reconhecimento nacional. Uma vez vencida a primeira partida, o Cinema Novo se dirigiu conscientemente para a conquista do público.
Por isso, Joaquim Pedro fez "Macunaíma" e Nelson Pereira fez "Como Era Gostoso o Meu Francês". Dissemos: "Agora é hora da conquista do público". Isso foi debatido. Iríamos usar aquela bagagem toda para fazer um cinema popular sem ser popularesco e sem ser imitação de Hollywood.
Folha - Só Glauber permaneceu no experimentalismo.
Barreto - Mas ele também tinha o compromisso de fazer um filme mais estruturado como produção, que foi "O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro".
Para o mercado externo que se abria para ele, Glauber tinha que dar um produto mais acabado, sem abrir mão dos seus pressupostos de linguagem. Alguns diretores também foram entendendo que nem todo mundo poderia ser Glauber.
O Glauber, aliás, tinha sedução pelo cinema narrativo. Seus filmes estavam sempre viajando na narrativa e desestruturando a narrativa, era a dialética dele. O filme que ele mais admirava –nós vimos esse filme umas cinco vezes e ele ficava besta pela quantidade de planos– era "Um Cidadão Acima de Qualquer Suspeita".
Folha - É verdade que o sr. inventou a palavra tropicália?
Barreto - Acho que sim. Na época, eu, Glauber e Gustavo Dahl estávamos pensando em fazer uma festa no Rio, na piscina do Copacabana Palace, com uns pés de caju artificiais, jaqueiras, uma coisa muito tropical. Chamávamos a festa de Tropicália, era uma brincadeira que a gente fazia.
Um dia, eu estava em São Paulo com o Glauber e o Aldemir Martins, quando o Caetano cantou aquela música para a gente. Eu disse: "Essa é a música da nossa festa, da Tropicália, é a própria Tropicália". O Caetano ficou meio assim... Depois, adotou o título.
Folha - Uma das críticas ao Cinema Novo é que ele teria cooptado com os militares.
Barreto - Esta é uma das acusações mais dolorosas que teve. É coisa de moralista. Porque o grupo do Cinema Novo, em vez de se demitir e dizer que era uma vítima da ditadura, que iria se exilar, continuou a fazer o cinema que queria, muitas vezes com os recursos oficiais e contra a ditadura.
Folha - Se não cooptou, o Cinema Novo pelo menos dialogou com o movimento militar.
Barreto - Dialogou.
Folha - Essa opção de dialogar com os militares em vez de combatê-los foi discutida pelos membros do Cinema Novo?
Barreto - Foi muito discutida.
Folha - Qual a posição do Glauber, ele que se exilou?
Barreto - Ele fez um auto-exílio. Glauber era uma pessoa muito marcada e tinha um grau muito grande de paranóia. Em face de alguns acontecimentos, como desaparecimento de pessoas, invasão de teatros, ele saiu para um festival e não voltou mais. Achou que a barra iria pesar para ele.
Folha - Como o sr. explica que o movimento militar tenha poupado todos os grandes diretores do Cinema Novo, que permaneceram em atividade?
Barreto - Houve, na verdade, um respeito, como houve por muitos outros. Entre 63 e o comecinho de 64, o cinema teve tanta repercussão internacional, e isto tudo veio antes do golpe, que o regime militar resolveu não comprar a briga. Vários foram presos, interrogados, mas não foram torturados.
Walter Lima, eu, muitos outros fomos interrogados várias vezes, mas de uma maneira respeitosa. Nós tentávamos nos antecipar sempre às posições que a ditadura pudesse tomar a nosso respeito, desfazendo equívocos, negociando com a censura...
Como eu disse, acho que havia uma concepção do governo militar de que o Cinema Novo não era popular, era de uma elite intelectual, que estávamos falando para nós mesmos. E o cinema continuou florescendo, bem como as outras artes, a música, o teatro, porque, embora o espaço político da imprensa estivesse sob controle rígido, no campo cultural havia um respiro grande e houve um verdadeiro boom da cultura brasileira naquele período, 67, 68.
Folha - Mas Chico Buarque e Caetano Veloso foram exilados.
Barreto - Porque a música tinha mais penetração, era mais popular. Os militares tinham dados concretos a respeito.
Folha - Por que o sr. acha que Glauber, ao voltar ao Brasil, fez aquele elogio ao presidente Geisel e ao Golbery?
Barreto - Foi o seguinte: quando o Geisel ainda nem era nem candidato, o Glauber tinha se encontrado em Paris com Jango, que lhe falou numa conversa:
"Vocês precisam ter muita atenção, porque nessa sucessão do Médici vai sair uma cisão nas Forças Armadas e quem vai ganhar será o Geisel. Vocês não podem hostilizá-lo. Ele é o sujeito que vai processar a abertura democrática, que vai combater a tortura. A esquerda não pode cometer mais este erro. Ele é intimamente ligado aos movimentos nacionalistas."
Glauber escreveu um artigo a respeito que provocou uma forte reação, nacional e internacionalmente, atingindo até a exibição de seu filme "A Idade da Terra" no Festival de Veneza, em 84.
Folha - Por que o Collor resolveu acabar com a Embrafilme?
Barreto - O Aníbal Massaini chegou a me dizer que houve um acerto dos exibidores brasileiros com os exibidores estrangeiros, que entraram na campanha do Collor com US$ 5 milhões.
Verdade ou não, paranóia à parte, o governo Collor se instala e a primeira medida que toma é a da extinção da Embrafilme (Empresa Brasileira de Filmes), da revogação de todas as leis de proteção...
Foi uma coisa muito sintomática, ninguém faz isso de graça. Havia um clima, evidente, de muita porrada em cima do cinema brasileiro, das coisas erradas ou não que tinham sido praticadas na Embrafilme, para o qual a própria classe cinematográfica contribuiu.
Folha - Quais as chances do cinema brasileiro em um mercado cuja globalização favorece tanto o produto americano?
Barreto - Eu não vejo o quadro com pessimismo. Feitas as contas, a atitude do governo Collor, reprovável em todos os sentidos, teve no entanto um efeito positivo, porque obrigou a parar e a repensar.
Hoje, o conceito não pode ser mais pura e simplesmente de produzir cinema. Nós temos que ter uma indústria de produção de imagens, que vai do cinema ao vídeo, à minissérie e à novela.
O Brasil tem que ter condição de fabricar uma gama de imagens que chegue, pelo menos, a produzir 20% ou 25% do que o país necessita para se abastecer, e as leis homologadas pelo governo Itamar favorecem muito isto.
Folha - O sr. acredita que o público vai voltar ao cinema para ver um filme brasileiro, como nos anos 70?
Barreto - Volta, está aí para provar o filme da Carla Camurati, "Carlota Joaquina", sucesso no Rio. O problema é que, se o filme é estrangeiro, o espectador não se importa da mesma forma. No máximo, ele diz que viu um filme ruim, americano, francês...
Mas, quando ele vê um filme ruim brasileiro, ele se sente insultado pessoalmente, desvalorizado. É uma frustração. É o mesmo que ocorre quando ele vê um time brasileiro jogar mal no exterior.
O filme vira um instrumento de afirmação pessoal. Isso é tão dramático que, quando o filme brasileiro é bom, ele diz: "É muito bom, nem parece brasileiro".
Folha - O sr. ficou rico fazendo cinema?
Barreto - O cinema não me acrescentou em patrimônio nada do que eu já não tivesse como jornalista. Posso dizer até que eu empobreci. Mas o meu objetivo nunca foi acumular, não tenho isso como valor na vida.
Respondi isso ao Paulo Francis, que insinuava que os cineastas tinham apartamento na Vieira Souto. Isto não me atinge, porque eu nunca imaginei nem imaginarei comprar um apartamento na Vieira Souto, nem que eu ganhe trilhões de dólares na minha vida.
O dinheiro, para mim, é um instrumento de fazer coisas. Agora, eu acho que vivo bem, na medida daquilo que eu gosto de viver: moro bem, como bem, não almejo luxos. Moro num edifício de classe média, com uma boa cobertura, uma vista indevassável, que me permite tomar meus banhos de piscina nu, quando quero. Isso não tem dinheiro que compense.
Folha - Uma das acusações mais frequentes ao sr. é que, em determinado momento, passou a militar apenas em causa própria e para o clã Barreto.
Barreto - Isso não corresponde à verdade, absolutamente. É outro mito. Meus últimos filmes foram produzidos com Antônio Calmon, Marco Altberg, Cacá Diegues, Bruno, Fábio, Joaquim Pedro.
O único cineasta amigo meu que nunca produzi foi Arnaldo Jabor, com quem eu queria filmar a história do Chateaubriand. Este filme é uma das minhas prioridades.
Agora, eu também não posso, pelo fato de serem meus filhos, dizer ao Fábio e ao Bruno que eu não quero fazer filmes com eles. Eu procuro ser o mais isento possível, dou a eles as condições que dou a outros diretores.
Folha - Dizem que o sr. é amigo de todo mundo, não importa onde e em que governo. O sr. tem um inimigo? Por exemplo: Harry Stone, o representante da indústria de cinema norte-americana no Brasil, é seu inimigo?
Barreto - Não, é um grande amigo, de 30 anos. Eu me relacionei muito com ele, porque ele facilitava as minhas entrevistas para "O Cruzeiro" em Hollywood.
Acho normal o papel que ele faz, e a indústria americana, competitiva como é, tem que ter esse homem. Não pode se dar ao luxo de ficar vendo a banda passar.
Mas eu tenho inimigos, sim, mesmo que não diga quais são. Não sou tão neutro assim. A única coisa que eu não cultivo mesmo é o rancor. Rancor dá câncer.

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