São Paulo, domingo, 1 de outubro de 1995
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Em busca do dissenso perdido

JOSÉ LUÍS FIORI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Neste ponto, nada como acompanhar a insuspeita resposta de um diretor executivo do Banco Mundial: "A sorte das reformas de mercado na América Latina tem que ser estreitamente associada com o fluxo e refluxo dos portfólios internacionais. Apesar de suas consequências de momento, algumas mudanças nas regras macroeconômicas do jogo são surpreendentemente simples de executar... e, acima de tudo, o sucesso dessas reformas macroeconômicas na sua fase inicial de desmantelamento não foi dependente da eficácia ou competência das burocracias públicas da região.
``Por isso, os resultados impressionantes nos agregados macroeconômicos começaram a aparecer rapidamente. Um dos lugares em que eles apareceram foi nas telas de computadores dos administradores financeiros de Nova York, Londres e Tóquio. Elas mostraram países que eram ricos em recursos naturais, dispostos a privatizar suas empresas estatais, que davam boas vindas a investidores estrangeiros e ofereciam algumas das mais altas taxas de juros do mundo.
``Além disso, suas moedas não somente eram apenas livremente conversíveis, mas ficavam mais fortes a cada dia, graças às ondas de capital externo derramadas copiosamente nestes países. Nestas circunstâncias, ficou fácil ignorar as realidades da região e simplesmente seguir o hype das companhias, vendendo bônus latino-americanos, e as campanhas de mídia dos governos enaltecendo sua imagem internacional" (Moises Naím, ``Foreign Affair", julho/agosto de 1995, págs 50 e 52).
``Desglosando" o argumento: o milagre econômico latino-americano deve quase tudo ao fato de que a nova tentativa de estabilização coincidiu com uma recessão mundial acompanhada da baixa das taxas de juros oferecidas pelos países centrais. Por isso, Moises Naím considera que os verdadeiros autores do milagre foram as "telas de computadores dos administradores financeiros" dos principais centros de decisão financeira do mundo. Foram eles que criaram o fenômeno dos "mercados emergentes" naqueles países periféricos, que também desregularam seus mercados, eliminando barreiras à entrada e à saída instantânea dos investidores.
Por isto, cresceu cinco vezes o volume de capitais que se deslocaram, desde 1990, para os mesmos lugares que um dia antes foram chamados de países devedores. E é exatamente por isto, também, que tudo ocorreu independentemente da base produtiva dos distintos países ou do caráter e dos textos político-ideológicos recitados por seus governantes. Na verdade, esta foi a forma pela qual uma fatia da América Latina chegou à era da globalização -exclusivamente financeira-, que se estende e multiplica de forma exponencial a partir de 1986, por meio das portas abertas em todo mundo pela desregulação dos mercados nacionais.
E, além disto, sobretudo depois que a elevação das taxas de juros internacionais começou a reverter estas tendências, ficou mais fácil entender como foi que os diferenciais de juros e a sobrevalorização fictícia das moedas locais viabilizaram uma estabilização rápida e indolor da moeda, ao mesmo tempo em que aumentava o consumo e a produção, o verdadeiro segredo do desaparecimento das resistências e da aprovação entusiástica das market friendly reforms. Uma hierarquia de determinações rigorosamente inversa à do senso comum dominante.

Anúncios do consenso
Também na América Latina, o episódio mexicano permitiu aos economistas menos ideologizados formarem uma consciência mais nítida de que as novas políticas de estabilização, ancoradas e viabilizadas pelas peculiares circunstâncias que viveram os mercados financeiros internacionais durante este período, têm gerado -apesar do seu sucesso imediato do ponto de vista inflacionário- novas inconsistências macroeconômicas capazes de jogar pela janela em poucas horas todos os milagres dos últimos anos.
Mas esta compensação, por sua vez, tem sido responsável por uma crescente "inconsistência fiscal", provocada pelas altas taxas de juros e pela diminuição simultânea da arrecadação, assumida como condição da competitividade e do aumento das exportações. Constituindo-se, portanto -como afirma em artigo recente o economista Barros de Castro-, numa "aposta de alto risco continuar a depender de reformas que, genericamente desejáveis, não podem mais ter a reputação de que gozavam antes do episódio mexicano", ficando claro a partir daí que, se "as economias submetidas à nova safra de planos aumentaram enormemente seus vínculos, elas de forma alguma se fundiram com a economia internacional".
Mas, se já há sinais, também na América Latina, de um certo desconforto intelectual com relação às certezas neoclássicas, como têm reagido, frente aos novos acontecimentos, os governos até aqui empenhados na mesma estratégia mexicana? Em primeiro lugar, no plano publicitário, reduzindo a crise a um fenômeno de "origem política" local e circunstancial.
Em segundo, no plano econômico, dobrando sua própria aposta na prolongação da bolha especulativa provocada pelo diferencial crescente entre os juros nacionais e internacionais. E, em terceiro lugar, no plano ``psicossocial", assumindo que a permanência do movimento especulativo seguirá favorecendo a América Latina, uma vez que as taxas de juros internacionais estão novamente em queda e, portanto, o fundamental seguirá sendo sua capacidade de transmitir a imagem de credibilidade dos seus mercados emergentes.
E é aqui, nesta dimensão "psicossocial" da estratégia, que duas coisas assumem seu verdadeiro papel: as reformas constitucionais e a promoção ativa do consenso transformado em peça essencial da publicidade de cada um dos países.

Melancolia democrática
Para entender as reformas, há que separar, em primeiro lugar, o seu núcleo econômico e, em segundo lugar, distinguir e hierarquizar ali o que foi realmente decisivo: a desregulamentação dos mercados financeiros e a abertura comercial e bancária das economias. O restante -a quebra dos monopólios estatais e as privatizações- ocorreu depois dos sucessos iniciais e não tem conseguido estabilizar, nem de longe, uma situação de equilíbrio fiscal e tampouco deslanchar uma onda privada de investimentos produtivos.
É por isso que se pode dizer que este segundo grupo de reformas (também chamadas de constitucionais) inscreve-se num outro campo, o das iniciativas destinadas a estabilizar as expectativas dos investidores, convencendo-os da firme decisão privatista dos governantes. Todas elas buscam reforçar o movimento inicial dos capitais, difundindo uma imagem externa da confiabilidade e da solidez inabalável do que Edgard Boeninger, consultor do Banco Mundial, chamou de uma enabling economic environment (ambientação econômica estimulante): a certeza de que nem as novas regras econômicas nem as decisões políticas liberalizantes serão alteradas.
Como o que interessa aqui é assegurar os horizontes futuros dos investidores, é aqui também que assume enorme importância tática a difusão de uma imagem de consenso nacional. Por quê? Porque ele suprime a idéia e a possibilidade de um sistema político-partidário competitivo, no qual a alternativa no poder pudesse levantar dúvidas sobre a continuidade da nova estratégia. Nesta perspectiva é que se deve entender o fenômeno cada vez mais generalizado do ``continuísmo" e da "melancolia democrática" que reina nestes mercados emergentes.
Por isto, também, a mídia usa hoje, invariavelmente, uma linguagem eufórica e esconde os fatos menos auspiciosos do ponto de vista dos investidores externos. E os próprios institutos de pesquisa, destinados a produzir e difundir os dados reais sobre a conjuntura, deixam de ser informantes confiáveis para participar deste esforço coletivo de maquiagem nacional.
Como consequência, o que fora um consenso inicial e compreensível, produzido pela euforia dos primeiros resultados, vai sendo substituído por um trabalho de eliminação ativa e consciente -pela via do cerceamento ou da distorção das informações- de toda a possibilidade de oposição. Neste quadro, o próprio dissenso, essencial à vida democrática, acaba sendo desqualificado como ``catastrofismo" e vai se transformando, nesta guerra de sombras e expectativas entre países e regiões, numa espécie de moderníssimo crime de "lesa-pátria".
Foi esta nova realidade que transformou, aliás, os presidentes destes países numa espécie de caixeiros-viajantes, que passeiam seu sorriso otimista pelo mundo, tentando vender a ``credibilidade" de suas próprias economias, numa disputa milimétrica pela confiança dos ``analistas de risco".

A única resposta
Apesar de soar chocante, esta tem sido, até agora, a única resposta real dos governantes latino-americanos ameaçados pelos estilhaços mexicanos. Fora este curto prazo e frente ao altíssimo "custo social de sua aventura liberal, eles têm se limitado a prometer a volta do crescimento econômico, que deverá ser alavancado agora pela abertura e a integração global dos seus mercados.
Mas neste ponto desconhecem, ou desconsideram, a gravidade que tem a advertência de Paul Krugman: "A difundida crença de que as reformas voltadas para a abertura das economias e a liberação dos mercados produzirá uma dramática aceleração no crescimento dos países em desenvolvimento representa um salto no escuro e um ato de fé".

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