São Paulo, domingo, 1 de outubro de 1995
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A experiência da linguagem

RÉGIS BONVICINO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Poeta e dramaturgo, ex-ativista do Language Poetry, principal movimento da cena norte-americana dos anos 80, e "publisher" da prestigiosa editora Sun & Moon, de Los Angeles, onde vive, Douglas Messerli, aos 48 anos, é uma das personalidades fortes da nova poesia norte-americana -hoje a mais vigorosa do continente, pela diversidade e resgate do caráter inovador do modernismo americano e internacional do início do século. Leia-se o trabalho dos vivos Robert Creeley, Larry Eigner, Michael Palmer, John Ashbery, para ficar só com os mais velhos.
Messerli prepara-se para lançar este ano "coletânea de novos poemas (um deles publicado nesta página), e para lançar também em livro a peça "The Walls Come True", já encenada, com poetas e dramaturgos no lugar de atores profissionais. Editou no ano passado a mais consistente e representativa antologia de poesia norte-americana desde de "The New American Poetry", de Donald M. Allen (1960, com atualizações): "From the Other Side of the Century: a New American Poetry 1969-1990", com mais de 1.000 páginas.
A antologia vendeu 8.000 exemplares desde 1994 e é um dos best sellers da editora -que tem entre seus autores os norte-americanos Jerome Rothenberg, Charles Bernstein, Carl Rakosi, Lyn Heijinian e, entre os estrangeiros, Paul Celan, o russo Arkadii Dragomoshenko, o francês Valéry Larbaud, o brasileiro Osman Lins.
Messerli editou, pela "New Directions", a antologia crítica "Language Poetries" (1988). Seus principais livros de poesia são: "Some Distances" (1982) e "Maxims From My Mother's Milk" (1988) e "An Apple, a Day" (1993). Escreveu seis peças de teatro, entre elas "The Confirmation" (1993), "à maneira" de John Cage (interdisciplinares, reunindo música, vídeo, poesia, vaudeville).
Os pontos de vista de Messerli, expostos na entrevista a seguir à Folha, mostram que poesia inovadora, de "linguagem", não pode ser tratada como monopólio. E que ela foi, ao longo das últimas décadas, adquirindo novos perfis e sentidos, vinculação mais intensa entre experiência e linguagem, reinvenção do verso, afastamento da idéia de "linha evolutiva", diferenciados dos propostos nos anos 50 e 60.
Os interesses e atitudes de Messerli (contra a trivialização da poesia e a busca de novas perspectivas) são, por outro lado, claramente opostos ao "existencialismo de salão". Linguagem como força viva, que muda e que se transforma.

Folha - O sr. vê futuro para a poesia em um mundo mercantilista?
Douglas Messerli - A poesia ou qualquer atividade literária inovadora vai enfrentar dificuldades de sobrevivência em um mundo cada vez mais voltado para o consumo. Todavia, se alguma literatura inovadora conseguir sobreviver, será a poesia, pois, entre todas as artes, é a menos vinculada às mudanças monetárias.
Aqui, nos Estados Unidos, o teatro (não o de Andrew Lloyd Weber) e a poesia têm estado em tão longa quarentena de remuneração financeira que os escritores jovens se sentiram à vontade para se dedicar ao experimentalismo, para tentar novas linguagens -o que é essencial para a permanência da arte séria. Aqui, por ter-se "alienado" da indústria cultural, a poesia talvez tenha se fortalecido. Todavia, não me agrada a idéia de arte marginal, que propositadamente se situa à parte e contra a sociedade. Quero trabalhar dentro da sociedade, para colaborar com sua mudança.
Folha - O processo de globalização pode criar uma "dicção universal"?
Messerli - Espero que não se, com "dicção universal, você quer dizer a anulação de estilos particulares de escrever e de falar. Não há uma forma correta e única de expressar experiência. Trabalho por maiores e não menores complexidades nas línguas: Deus viu-se obrigado a destruir a Torre de Babel, apreensivo com o "poder do burburinho". Por outro lado, é importante comunicar-se, tentar compreender o outro e tolerar as diferenças de significado que, cada um de nós, representa. Comunicação é importante. Uma língua universal não.
Folha - Sua poesia contém pontos de vista sociais?
Messerli - É impossível que a poesia não tenha pontos de vista sociais. O poema é, num certo sentido, um "acordo" entre autor e leitor, para se compartilhar a língua. Uma grande parte da poesia, da ficção e do teatro, no entanto, apresenta preocupações sociais da mesma forma que as empresas apresentam seus produtos. Como em verdadeiros comerciais, as questões são caracterizadas de modo a manipular o leitor. Não existe resposta fácil para os problemas que nos atormentam.
Folha - Qual é a sua opinião sobre Ezra Pound, William Carlos Williams e Gertrude Stein?
Messerli - Você enumerou a "divina trindade" da poesia inovadora nos Estados Unidos. Com Pound, aprendi o que poderia ser um poeta. Com Williams, aprendi o que é um poema. Com Stein, aprendi como escrever um poema.
Pound nunca me agradou muito como poeta, embora os "Cantos" sejam até hoje surpreendentes, mas foi decisivo a me ajudar a compreender o que significa ser poeta. Prefiro o Williams experimentalista de "Spring and All" (1923) ao "bom doutor", de "Paterson" (1946/58).
Williams mostrou como um norte-americano poderia escrever poesia, diferentemente de italianos ou franceses. Pound, em geral, se inspirava em modelos europeus, enquanto Williams fez poemas vinculados ao mundo dos plátanos e dos "cortadores de grama", no qual vivi. Vidros quebrados num terreno baldio jamais seriam assunto para Pound! Stein foi a poeta mais importante. Poesia: uma vida vivida poeticamente. Stein escreveu a poesia que mudou nossa maneira de ver o mundo.
Folha - Como o sr. se situa na poesia norte-americana de hoje? O que é Language Poetry?
Messerli - Escrevi peças de teatro e ficção antes de escrever poesia. Já estava na pós-graduação quando, estimulado por Marjorie Perloff, passei a me interessar por poesia em si. Por ter começado "tarde", mergulhei diretamente no estilo inovador daquele momento. Escrevia de modo "tão diferente", que os amigos diziam que o meu trabalho parecia "tradução" de uma língua exótica.
Passei a editar uma revista, a "Sun & Moon: A Journal of Literature and Art" e descobri que outros, como Bruce Andrews, Charles Berstein, Ted Geenwald, Ray Di Palma e James Sherry, estavam explorando um território diverso do explorado por Charles Olson e pelos poetas da Escola de Nova York, ou do explorado por aqueles que ainda acreditavam nos beats.
Estava interessado no processo da linguagem (palavra a palavra, sílaba a sílaba). E em como este processo produzia significado. Cada um escreveu poemas diferentes entre si, porém, nossas preocupações e atitudes eram semelhantes. Dentro do que a poeta Lyn Hejinian descreveu como um "acidente intencional", formamos um grupo. Com o tempo, apesar das inúmeras diferenças, este "grupo" passou a ser designado como Language Poetry, pois muitos de nós havíamos colaborado na revista "L=A=N=G=U=A=G=E", editada por Charles Bernstein e Bruce Andrews. Escritores da geração anterior, como Michael Palmer, por exemplo, passaram também a estar associados com o termo "L=A=N=G=U=A=G=E".
Mas não passávamos de um tempo e de um lugar, uma geração preocupada com a trivialização da poesia e com a necessidade de novas perspectivas. Já existia uma antologia da ``Language", editada por Ron Silliman. Porém, resolvi -a convite da editora New Directions- editar a minha, batizada de "Language Poetries". Essas duas antologias definiram a Language Poetry. Todavia, o alvoroço suscitou questões sérias. Os poetas de San Francisco recriaram uma espécie de "igrejinha", seguindo o modelo da Escola de Nova York, que tanto abjurávamos. Este foi o final da Language, se é que houve um começo.
Depois do "fim" do "movimento", retomei meus interesses multidisciplinares: poesia, prosa de ficção, cinema, teatro -fundidos. Escrevi, por exemplo, "Along Without", primeiro volume de uma trilogia. "The Structure of Destrution", com o subtítulo "A Fiction in Film for Poetry" (1993). Mas, também, retornei à poesia lírica e estou para lançar, entre outros, a coletânea "After".
A poesia norte-americana de hoje é muito estimulante e diversa. O público tem crescido. Há novos poetas com trabalhos surpreendentes. A poesia é, no momento, a mais saudável e vigorosa das artes nos Estados Unidos.
Folha - Como o sr. criou a editora Sun & Moon?
Messerli - A editora nasceu da revista. E de minha convicção de que os escritores inovadores (teatro, poesia, ficção) haviam sido abandonados por editores comerciais e pelos professores universitários, que se voltaram para a teoria: Derrida, Lacan e outras figuras "não literárias", como centro de pesquisa e aula. Estas idéias podiam ser aplicadas a qualquer escritor do passado e do presente -inexistindo razão para se ler e ensinar poesia contemporânea. Voltei-me contra esse padrão e comecei a trabalhar com os resquícios remanescentes da poesia inovadora. Passei a publicar autores contemporâneos e, depois, iniciei a publicação da série "Clássicos", com Gertrude Stein, Paul Celan e, por exemplo, Eça de Queirós. Estes livros são "modelos", agora, para as universidades.
Folha - Para o sr., o que significa, afinal, poesia inovadora?
Messerli - A poesia que entendo como a mais estimulante por vezes me deixa confuso, preso em uma armadilha, frustrado e, até mesmo, me faz sentir ódio ou me exalta por tanta beleza de sons e significados possíveis. Gosto da poesia que me faz repensar o que sei, que me exige encontrar novos sentidos para minha existência. Este "significado para mim mesmo" é mais importante do que o poema, ao demonstrar, de modo transparente, um significado para todos. Literatura não é um "troféu", que você leva para casa. Quero reencontrá-la todos os dias, em termos novos. Um bom poema me faz voltar a ele pelo desafio que representa, por sua energia. Linguagem é força viva -que muda e que se transforma. Poesia inovadora é um modo de se ver o mundo e não mera atividade de escrita.

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