São Paulo, segunda-feira, 2 de outubro de 1995
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Imagens do século 19

ANNATERESA FABRIS

Mestres da Fotografia no Brasil: Coleção Gilberto Ferrez
Pedro Vasquez
Centro Cultural Banco do Brasil, 276 págs.
R$ 80,00

Pioneiro dos estudos fotográficos no país, graças à publicação, em 1946, do artigo ``A Fotografia no Brasil e um de Seus Mais Dedicados Servidores: Marc Ferrez (1843-1923)", Gilberto Ferrez foi homenageado, alguns meses atrás, com uma exposição dedicada a sua coleção particular. Com curadoria de Pedro Vasquez, a mostra, organizada pelo Centro Cultural Banco do Brasil (Rio de Janeiro), foi articulada praticamente nos mesmos moldes do estudo de 1946, seguindo um critério geográfico, que, do Rio de Janeiro, se espraiava por alguns estados, nos quais a presença de profissionais representativos, permitia definir um perfil da fotografia de paisagem no século 19.
Bastante atraente em termos editoriais, dando às imagens uma legibilidade que fazia falta à mostra, na qual uma iluminação soturna tornava complicado o exercício do ver, o catálogo ``Mestres da Fotografia no Brasil: Coleção Gilberto Ferrez" é, no entanto, problemático em termos conceituais. Não só por retomar um critério que, se teve sua razão de ser no passado, é bastante discutível nos dias de hoje, mas sobretudo pelo que o curador diz e pelo que não diz.
No afã de sublinhar a diferença da fotografia brasileira em relação às realizações européias, Vasquez comete um deslize já de saída, ao fazer referência à ``inacreditável abrangência territorial" do caso nacional, ao qual contrapõe a circunscrição geográfica das experiências do Velho Mundo (pág. 13). Por que falo em deslize? Porque Vasquez esquece o grande alastramento que a fotografia européia teve durante o século 19, ao fazer explodir todo e qualquer limite geográfico e ao incorporar no repertório visual da cultura ocidental imagens de povos e países ``exóticos" com objetivos, não raro, ideológicos. A visão do ``outro" propiciada pela fotografia oitocentista não respondia apenas à vontade de conhecer outros povos e costumes, nem era tão-somente emanação do mito exótico, tão caro ao Romantismo. Em muitos casos, as expedições fotográficas européias foram verdadeiros instrumentos da política colonialista, tanto registrando grandes espaços vazios, quanto enfatizando costumes ``bárbaros" e ``atrasados", ambos requerendo uma presença que os animasse e trouxesse as luzes da civilização...
Vasquez aproxima-se rapidamente da questão no verbete dedicado a Frond, no qual introduz, sem discutir, a noção de um ``prisma deformante" no registro do trabalho escravo (pág. 27), mas a única imagem selecionada não permite comprovar tal afirmação. Está bastante longe do processo de idealização que permeia muitos dos ícones de ``Brasil Pitoresco", nos quais a representação do negro se pauta pelo mesmo olhar neoclássico, que caracterizava, por exemplo, as cenas urbanas de Debret.
A evocação do nome de Debret permite pensar uma outra questão apenas tangenciada por Vasquez: a relação da fotografia com os modelos pictóricos anteriores e contemporâneos. Se eles aparecem no caso de Frond, referidos à captação do Rio de Janeiro, teriam merecido um tratamento mais exaustivo por parte do autor, por constituírem um dos esteios fundamentais da fotografia de paisagem.
Ao falar simplesmente em fotografia de paisagem, sem tentar definir os dois principais caminhos por ela percorridos no século 19, Vasquez acaba por confirmar uma visão homológica da imagem técnica, sem chamar a atenção para seus mecanismos de construção. Representação moldada na tradição da pintura e da gravura, ou busca de uma visualidade propiciada pelas possibilidades expressivas do novo meio, a fotografia de paisagem desperta uma série de problemáticas, simplesmente eludidas pelo autor e, no entanto, centrais à compreensão do universo visual oitocentista.
A opção pelo critério geográfico e pela representação por fotógrafos faz com que Vasquez deixe de problematizar, por exemplo, o modo pelo qual são tomadas as diferentes imagens, frequentemente fruto de um compromisso entre o imaginário individual e o imaginário coletivo, como o ``caso Frond" parece comprovar. Uma outra questão central da fotografia do século passado, claramente presente no acervo de Ferrez, é o caráter monumental atribuído à paisagem pelos fotógrafos. Não se trata de uma constatação, de uma rendição da objetiva a uma evidência, mas novamente de uma construção. A fotografia do século 19 tende a mostrar a paisagem numa ótica monumental, por um processo de abstração, devedor dos modelos pictóricos, como denotam de sobejo as imagens de um panorama tão ``exótico" quanto o brasileiro, o da cidade de Nápoles (1). No nosso caso específico, bastaria lembrar certas fotografias de Marc Ferrez e de Paff, que apresentam semelhanças nada desprezíveis com o paisagismo romântico, por sua procura do sublime e do pitoresco, ou de Leuzinger, às quais Victor Meirelles atribuía caracteres artísticos pelo domínio das perspectivas linear e aérea.
A ótica monumental não é exclusiva da representação da natureza. Muitas das fotografias da coleção Ferrez atestam a existência de uma visão igualmente monumental da cidade e da arquitetura, motivando a necessidade de novas interrogações: em que momento tais imagens são tomadas, que representação urbana desejam transmitir, qual a visão de arquitetura presente nelas, por que se dá ênfase a certos marcos simbólicos? Augusto Malta, representado no catálogo com sete reproduções, é um caso emblemático para estas interrogações. Ao documentar o ``bota-abaixo" de Pereira Passos e as emergências monumentais dele decorrentes, Malta é autor de um conjunto de imagens, no qual ao valor documental se soma um olhar fotográfico produtivo, como demonstram ``Praça da República" (1906), articulada a partir de uma profundidade em planos regulares, próxima da espacialidade da pintura moderna, ou ``Hotel Guinle" (1910), composição estável e centralizada, que responde de perto aos modelos do desenho arquitetônico de fachadas e perspectivas, praticado desde a segunda metade do século 19 (2).
Parece-me necessário sublinhar tais possibilidades de leitura da imagem fotográfica para evitar os equívocos do ``método Vasquez", que se limita a uma descrição nominal do repertório iconográfico apresentado, ou, pior, fala de ``bela composição" (pág. 242), sem trazer, no entanto, elementos analíticos que permitam comprovar a afirmação. Ou que continua perpetuando acriticamente o mito de Hercule Florence, esquecido de que a atribuição da descoberta da fotografia a Daguerre é simplesmente o resultado de uma ``guerra" envolvendo patentes industriais, ganha tempestivamente pela França contra iguais pretensões da Inglaterra.
Para que a reflexão sobre fotografia adquira no Brasil outra densidade, novas reflexões se revelam imprescindíveis, não bastando a simples apresentação de um repertório de imagens, ou breves descrições biográficas de seus autores, como faz, ao contrário, o catálogo em exame.

NOTAS
1. Ver o catálogo da exposição ``Immagine e Città. Napoli nelle Collezioni Alinari e nei Fotografi Napoletani fra Ottocento e Novecento", Napoli, Macchiaroli, 1981
2. Cf.: Solange Ferraz de Lima, ``São Paulo na Virada do Século: as Imagens da Razão Urbana - a Cidade nos Álbuns Fotográficos de 1887 a 1919", São Paulo, FFLCH/USP, 1995, pág. 64 (mimeo)

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