São Paulo, segunda-feira, 2 de outubro de 1995
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Dá-lhe Popper

LEDA PAULANI

The Dependency Movement - Scholarship and Politics in Development Studies
Robert A. Packenham
Harvard University Press, 362 págs.

De que modo se pode compreender sistemicamente a forma de funcionamento da economia moderna? Como opera sua dinâmica? Como ela se transforma? Que papel cabe nesses processos às economias não centrais? Que armas utilizar para superar o subdesenvolvimento?
Essas questões tomaram o centro da arena intelectual e política desde o final da Segunda Guerra Mundial e ganharam para nós, latino-americanos, um lugar de destaque, principalmente a partir das considerações de Raúl Prebisch, então um dos nomes mais importantes da Cepal, em famoso texto de 1949. Ali, como se sabe, Prebisch indica a desconfortável posição ocupada pelas economias não industrializadas no contexto das relações comerciais internacionais, por conta da deterioração de seus termos de troca. Nasce aí o famoso binômio ``centro-periferia", referência doravante obrigatória para quem quer que se propusesse a refletir sobre questões relativas ao subdesenvolvimento.
Até o início dos anos 70 a discussão continuou na ordem do dia e é durante esse período que surgem as idéias dependentistas, a um só tempo tributárias e críticas do paradigma cepalino. Daí em diante, porém, a discussão desaparece de cena, pelo menos da cena acadêmica, por quase uma década e meia. Na realidade, é a discussão mais geral sobre os determinantes do crescimento econômico que perde relevância, para só voltar a recuperá-la em meados dos anos 80.
A preocupação com essas questões ressurge a partir daí com força total, da New Growth Theory aos modelos neo-schumpeterianos, da Real Business Cycle à New Keynesian Economics. Mas evidentemente estamos aqui nos restringindo ao âmbito da ciência econômica convencional, cujo olhar não se demora, prioritariamente, sobre o mundo periférico. Onde enquadrar nesse novo panorama as preocupações que caracterizaram o ``movimento da dependência", vale dizer, as preocupações relativas às raízes de nosso permanente atraso, de nossa pouca autonomia, de nossa crônica desigualdade social e de renda?
A resposta que o politólogo americano Robert A. Packenham seguramente daria a essa pergunta é que, consideradas da ``perspectiva da dependência", tais questões deveriam de fato ser banidas do cenário acadêmico. De acordo com Mr. Packenham, que, como se vê, tem muito pouco apreço pelo objeto que estuda, as idéias dependentistas violam os valores básicos da academia: ``A liberdade de ir onde os fatos, a lógica e a razão levarem, livre de constrangimentos impostos por pressões políticas ou pelo medo de ser politicamente incorreto" (pág. 6).
Por isso, dentre outros objetivos, seu livro tem também o de construir, segundo os seus próprios critérios, uma alternativa válida ao ``approach" da dependência (a ``dependência analítica"). Mas não é esse o aspecto mais importante nem o mais interessante do livro. Segundo esclarece o próprio autor no prefácio, sua principal preocupação é com os imperativos politizantes do ``movimento da dependência", com sua prática e seus efeitos, mais que com suas ``idéias substantivas" (posição, para dizer o mínimo, paradoxal para quem se arvora detentor dos verdadeiros critérios de cientificidade).
E o livro de Mr. Packenham é, de fato, exatamente isto: uma descrição exaustiva, acompanhada de uma análise sempre crítica, das várias vertentes e correntes que compuseram o ``movimento da dependência", de seu impacto nos Estados Unidos e na própria América Latina, mas, principalmente, de suas premissas epistemológicas e normativas. Em suma, como bem observou Fernando de Barros e Silva em matéria na Folha em 23 de julho passado, trata-se da obra de um acadêmico americano típico, um trabalho de formiga operosa (são 405 autores e 594 obras citadas).
Mas o livro tem também -o que não deixa de ser, cá para nós, do Terceiro Mundo, delicioso- um lado provinciano, consumindo páginas e mais páginas na discussão de apimentadas picuinhas, como a da verdadeira paternidade da ``perspectiva da dependência", ou a da reverência que se presta a Cardoso e Faletto, em contraste com a sem-cerimônia com que se trata Gunder Frank. O fato de o sociólogo Fernando Henrique Cardoso ter se transformado (hélas!) no presidente FHC acabou por conferir a este aspecto anedótico uma dimensão desmesurada, incompatível com o caráter circunspecto do livro (de resto, comum nos defensores sisudos da ``sociedade aberta").
Mas vamos afinal ao que interessa, à natureza da crítica realizada por Mr. Packenham. De início, convém frisar que é justamente por conta desse caráter dominantemente crítico que sua análise prioriza mais a continuidade que as diferenças entre as várias correntes dependentistas. Para ele, existe um problema de fundo em quase todas elas, seu holismo substantivo. Mas o crime contra a ciência é cometido mesmo na esfera epistemológica: uma combinação de holismo metodológico (sic), com caráter utópico, sem falar no (mau) costume de politizar a ciência.
Em função disso, a vertente de Cardoso e Faletto ganha um espaço privilegiado, visto que, segundo ele, o mito de ser esta uma versão mais sutil e sofisticada que a primitiva elaboração de Gunder Frank, acabou indevidamente por preservá-la de uma crítica mais séria e de uma avaliação mais profunda, ``acadêmica e esclarecedora". Para ele, não há distinção entre as duas vertentes: ambas devem ser condenadas por seu caráter não científico. Ele dedica então dois capítulos inteiros, num total de 56 páginas, à tarefa de criticar tal ``versão moderada", não se privando de repetir, obsessivamente, as mesmas críticas ao longo do livro.
O ponto básico de Mr. Packenham é que o principal ``approach" da dependência está equivocadamente determinado. Trata-se, para ele, fundamentalmente da discussão capitalismo versus socialismo e não da discussão dependência versus autonomia nacional. O ``cuore" das idéias da dependência é a tentativa de estabelecer um casamento (para ele, tenso e conflituoso) entre o marxismo e o nacionalismo, sendo o cabeça-do-casal o marxismo, claro. O socialismo marxista, afirma Mr. Packenham, é, de longe, o valor substantivo mais importante da perspectiva da dependência. E daí que ``as idéias da dependência, assim como as idéias marxistas em geral, juntam preocupações teóricas e práticas, transformam a prática no árbitro final da verdade e misturam preocupações científicas e éticas com outras quase religiosas" (pág. 28).
Mas suas farpas sobram também (e poderia ser de outra forma?) para o caráter dialético das análises da ``perspectiva da dependência", e, neste particular, ele devota um carinho todo especial ao sociólogo Fernando Henrique, ``um pensador sempre eclético, ambíguo e contraditório" (pág. 218). Para auxiliá-lo nessa tarefa e depois de esposar sua simplória visão da dialética -``numa abordagem dialética genuína, há uma tensão entre tese e antítese que é identificada, trabalhada e resolvida criativamente (sic) em termos de uma nova tese ou síntese" (pág. 74)-, Mr. Packenham vai buscar ninguém mais que Jon Elster, o papa do chamado ``marxismo analítico" (marxismo?).
Ouçamo-los: ``Na medida em que falha ao lidar adequadamente com as contradições, Cardoso parece estar seguindo Hegel e Marx (...): `Hegel aparentemente acreditava (...) que nossas visões sobre o mundo têm de ser contraditórias porque o mundo ele mesmo contém contradições. Esta visão é dificilmente compreensível... Algumas vezes Marx parece abraçar a doutrina da `Lógica' de Hegel, segundo a qual o mundo é contraditório no sentido de que duas proposições mutuamente inconsistentes podem ser ambas verdadeiras. Esta visão, francamente, é um nonsense' (Elster, ``An Introduction to Karl Marx", Cambridge University Press, 1986). Infelizmente, estas são as formas principais de Cardoso lidar com as contradições" (pág. 75).
Mas, afinal de contas, de que santuário científico profere Mr. Packenham tais julgamentos sumários? Vejamos os remédios (penas?) que ele prescreve: contra o holismo substantivo, abuse da abordagem analítica; contra a utopia, tome fundamentação empírica; contra a politização da ciênca, vá de neutralidade teórica; contra o holismo metodológico, dá-lhe Popper!
É bem verdade que o presidente FHC mandou que esquecêssemos tudo que ele escrevera. Mas, com críticas deste tipo, somos obrigados a desobedecer-lhe. Por expressivas que possam ser suas deficiências e ambiguidades, o trabalho do sociólogo Fernando Henrique dificilmente sai lesado se as críticas, pretensamente ``acadêmicas e esclarecedoras" que lhe são feitas, provêm do santuário do liberalismo.

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