São Paulo, segunda-feira, 2 de outubro de 1995
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Caio ou Tito?

RUBENS RODRIGUES TORRES FILHO

Sobre o Fundamento da Moral
Arthur Schopenhauer
Tradução: Maria Lúcia Cacciola
Martins Fontes, 240 págs.
R$ 17,80

Schopenhauer estava com aproximados 50 anos quando escreveu, para candidatar-se a um prêmio oferecido pela Real Sociedade de Ciências da Dinamarca, esta dissertação sobre o fundamento da moral. Fazia 20 anos, já, que havia publicado o livro que contém a explicação definitiva do universo e da consciência (``O Mundo como Vontade e Representação" é de 1819) e acabava de ser-lhe atribuído um prêmio equivalente, na Noruega, pelo célebre escrito sobre a liberdade da vontade. Concorrente único, julgado incognitamente como é de regra nesses casos, viu seu trabalho considerado insatisfatório e rejeitado.
Haveria algo de podre na academia de ciências da Dinamarca, ou o filósofo alemão, plenamente amadurecido e senhor dos seus meios, não conseguiu dar conta da questão proposta, a respeito da ``fonte e do fundamento" da moral? Como se explica o surpreendente contraste entre a excelência do candidato e a sumária reprovação?
Ao verter para o alemão o texto latino da ``quaestio", o próprio Schopenhauer dá uma pista preciosa: traduz sem hesitação a palavra ``fundamentum" (empregada no sentido de princípio explicativo, idéia ou conceito fundamental) por ``Grundlag" (que significa, muito mais concretamente, base, piso, alicerce sobre o qual algo se assenta). Somente nesse sentido o problema lhe interessa. Sem se dar conta, acreditando perguntar banalmente pelo ``nexo entre a metafísica e a ética" (como ficaria claro posteriormente, no texto do ``veredicto" final), os membros da academia haviam formulado, aos olhos do filósofo, uma pergunta muito mais séria e vital: qual é a base efetiva em que se apóiam a doutrina, os sentimentos e as ações morais?
Do mesmo modo que o próprio don Juan, quando recebeu a espantosa visita do convidado de pedra, não negou ter feito aquele convite irrefletido, mas ofereceu-lhe assento à mesa, assim aqueles senhores, ao receber uma resposta com que não contavam e que lhes desagradou, não tinham mais o direito de ``negar ter perguntado o que efetivamente perguntaram". É nesses termos que, no prefácio de ``Os Dois Problemas Fundamentais da Ética" (``Werke", 3, 487), onde sua dissertação é dada a público pela primeira vez, o candidato reprovado reprova seus julgadores. Em lugar de um convencional exercício de habilidade retórica, foi-lhes encaminhado (indevidamente ou não?) o comunicado de uma verdadeira descoberta: a demonstração de que é inútil buscar o fundamento da ética na razão, simples capacidade de generalização abstrata, ou no conceito de lei, herança onerosa da tradição judaico-cristã, e de que somente o enigmático sentimento da compaixão (``Mitleid", ``sympatheia", ``compassio" ou ``misericordia", ``pitié"...) permite explicar suficientemente todos os fenômenos moralmente valorizados.
Daí a pertinência de que o texto tenha toda uma primeira parte (quase a exata metade de sua extensão) de natureza puramente negativa, não por um desequilíbrio da exposição, mas para submeter a fundamentação da metafísica dos costumes, de Kant (seguramente a mais avançada da época), a uma técnica muito semelhante àquela que se tornou popular nos dias de hoje sob o nome de ``desconstrução". Uma prévia limpeza de terreno, para que a solução positiva, introduzida somente no parágrafo 16 (``Depois da preparação necessária até aqui indispensável...", pág. 125), possa afirmar-se em sua legitimidade plena. E assim se confirme aquilo que o autor espera: ``Minha solução do problema lembrará a muitos o ovo de Colombo" (pág. 15).
Vale a pena, ainda, conhecer os termos do exame impiedoso (!) que Schopenhauer faz do fundamento kantiano da ética e de sua forma legislativo-imperativa, sob a luz crua da exigência imposta a ela pela força mesma das paixões: ``Contrapor ao egoísmo, e ainda por cima à maldade, um campeão adulto e superior a ela -este é o problema de toda ética: aqui o Ródano, aqui salte!" (pág. 68).
Mencionemos apenas, para benefício daqueles que ainda não têm o livro em mãos, um de seus momentos mais penetrantes (o comentário ao princípio: ``Age somente segundo a máxima que possas ao mesmo tempo querer que valha universalmente para todo ser racional"), onde se pode, ao mesmo tempo, experimentar o sabor da prosa desse escritor vigoroso e contundente: ``(...) retenhamos apenas o fato de que aquela regra fundamental, estabelecida por Kant, não é ainda o próprio princípio moral, mas apenas uma regra heurística para ele, isto é, uma indicação de onde deva ser procurado. Assim, pois, ainda não é dinheiro vivo, mas uma ordem de pagamento segura. Quem é que deve propriamente pagá-la? Para dizer a verdade, francamente: um tesoureiro aqui bem inesperado, que outro não é senão o egoísmo" (pág. 64). De fato, a universalização da imoralidade me prejudicaria, a mim, que posso vir a ser sua próxima vítima! Sob a capa daquela fórmula severa, nada que seja assim tão diferente, portanto, do velho temor ao castigo divino...
Melhor que servir de ponto de partida para uma genealogia dos funestos pós-kantianos (espelhos de aumento dos erros de Kant), esse desmascaramento crítico da moral kantiana funcionará como preparativo e condição de inteligibilidade do ponto de vista ``diametralmente oposto" que será sustentado a seguir. É o que fica especialmente claro no parágrafo 19, quando o autor, para confirmar o resultado de sua investigação, irá propor, como ``experimentum crucis", um exemplo imaginário.
Suponhamos dois jovens, Caio e Tito, ambos apaixonados, cada um por uma moça, ambos impedidos de realizar essa paixão pela existência de um rival mais feliz. Ambos têm a oportunidade de, impunemente, sem ser descobertos nem sequer levantar suspeitas, eliminar esse rival. Ambos, após o conflito interior correspondente, desistem de cometer o ato e, com essa omissão, praticam a justiça. Mas o primeiro deles explicitará seus motivos, por exemplo, nestes termos: ``Pensei que a máxima de meu procedimento neste caso não teria sido adequada a dar uma regra universalmente válida para todos os possíveis seres racionais, pois eu teria tratado meu rival só como meio e não, ao mesmo tempo, como fim". O segundo, por sua vez: ``Quando chegou a hora dos preparativos e por um momento não tive de me ocupar de minha paixão e sim daquele rival, tornou-se-me claro, pela primeira vez, o que se passaria com ele. Fui então tomado pela compaixão e pela misericórdia, tive dó dele e não tive coragem: eu não poderia fazê-lo".
Qual desses dois, perguntará agora o filósofo ao leitor imparcial, é o melhor homem? Mais rigorosamente: qual desses dois monólogos de consciência é mais verossímil, qual deles exprime um fundamento dotado de força bastante para contrabalançar o impulso criminoso do egoísmo? Caio ou Tito?
Indo na contramão da inteira tradição da filosofia ocidental (que, desde Sêneca até Kant, reprova os ``compassivos") e, tendo a seu lado unicamente o ``grande moralista" Rousseau (e notícias da sabedoria do Oriente), Schopenhauer não duvida de ter achado o verdadeiro chão da moral: a ``compaixão natural", tão independente de religiões e de particularidades culturais, tão presente em todos os tempos e povos, que chega a ter, como sinônimo, a palavra ``humanidade". Resultado que, já se viu, não teve boa acolhida em Copenhague.
Esta não é, bem entendido, uma obra fundamental de Schopenhauer. A explicação propriamente metafísica desse ``misterioso fenômeno", que, de fato, sem depender dessa explicação, já fundamenta suficientemente a ética, é apenas esboçada nas suas últimas 12 páginas. Uma moral propriamente schopenhauriana teria de envolver a metafísica da Vontade e da negação da Vontade (o quarto livro do ``Mundo"). Mesmo assim, vale também neste caso o que o filósofo escreveu mais de uma vez: ``Se um dia for chegado o tempo em que me leiam, descobrirão que minha filosofia é como Tebas de cem portas: por todos os lados se pode entrar e através de cada um chegar por um caminho reto até o centro" (``Werke", 3, 484).
Entretanto, no último parágrafo do prefácio desta edição (escrito pelo competente comentador Alain Roger), o neologismo ``nolonté" (sic), introduzido por sugestão do latim ``nolo" e por oposição a ``volo", não deveria ter sido traduzido por ``vontade": um contra-senso como esse, na tradução de um original francês, além de desorientar o leitor, contrasta muito enfaticamente com o exemplar zelo filológico dedicado por Maria Lúcia Cacciola (autora de ``Schopenhauer e a Questão do Dogmatismo", Edusp, 1994) ao texto alemão desse clássico inconformista.

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