São Paulo, segunda-feira, 2 de outubro de 1995
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Outras intenções

ARMANDO MORA DE OLIVEIRA

Expressão e Significado: Estudos da Teoria dos Atos da Fala
John R. Searle
Tradução: Ana Cecília G.A. de Camargo e Ana Luiza Marcondes Garcia
Martins Fontes, 294 págs.
R$ 22,50

Intencionalidade
John R. Searle
Tradução: Julio Fischer e Tomás Rosa Bueno
Martins Fontes, 390 págs.
R$ 27,50

Com a publicação em português de ``Expressão e Significado" (Expression and Meaning, 1979) e de ``Intencionalidade" (Intentionality, 1983), de John R. Searle, fica disponível para o leitor em toda a sua extensão o percurso iniciado com ``Atos de Fala" (Speech Acts, 1969), este de há muito entre nós referência obrigatória nos estudos de filosofia da linguagem. A questão preliminar que se coloca a quem deseje fazer um balanço desse mesmo percurso é dar conta de sua aparente descontinuidade. Como é que um filósofo que partiu duma investigação sobre a estrutura dos atos de fala, em parte empírica, desemboca no campo polêmico da filosofia da mente? Existiria então no interior da obra de Searle um momento de viragem mentalista, quando teria abandonado Wittgenstein e Austin, com sua recusa de teorização, para se tornar um defensor ``à outrance" da intencionalidade do mental? Como se explica que um filósofo com o ``pedigree" analítico de Searle vá revisitar a tradição fenomenológica husserliana tão contestada por Oxford, e não só?
Os ensaios que se encontram reunidos em ``Expressão e Significado" trazem notáveis contribuições positivas para a solução de problemas relativos a metáfora, significado literal, atos de fala indiretos, taxonomia das forças ilocutórias etc., que complementam a teoria da estrutura dos atos de fala delineada em 1969. O próprio autor nos diz que inicialmente pertenceriam a um livro projetado sobre a teoria geral do significado, mas que a parte relativa à intencionalidade (ou seja, a explicação daquilo que no fundo torna possível o ato de fala), ganhou autonomia de modo a constituir o livro de 1983. De certo modo, temos aqui a pista para poder acreditar que, logo a seguir a ``Atos de Fala", Searle já pensava na dependência essencial da linguagem da estrutura da mente, e que nele não ter havido nunca, digamos, um período de ``behaviorismo filosófico". Estes ensaios marcam, pois, uma continuidade de pensamento, não havendo espaço para uma ruptura que nos permitisse falar dum primeiro Searle e de um segundo Searle.
Se considerarmos a estrutura de um ato de fala, por exemplo, a promessa, tal como Searle ensina, veremos que desde o início funciona nela uma restrição geral que se pode estender a todo comportamento (racional): ninguém deve dizer ou fazer coisas que não tenham algum propósito, que sejam irrelevantes. A natureza social desta máxima griceana baseada na cooperação já seria dada na linguagem onde apareço como racionalidade anônima, e é fora de dúvida que este aspecto pragmático da interação social não deixa de ser a inspiração primeira de Searle ao estudar a linguagem. Mas as regras que ele sistematizou para a possível realização de qualquer ato de fala, por exemplo, a chamada regra de sinceridade (quem promete deve ter a intenção de fazer), são intrínsecas ao ato de fala específico, possuem uma natureza categorial que não deriva (diretamente?) dum princípio pragmático. (De passagem, é de observar que à época de ``Atos de Fala" a insistência num conjunto de regras ordenadas ecoa em Searle a esperança, depois abandonada, duma convergência entre o seu trabalho e o modelo da gramática gerativa, conforme o ensaio ``Os Atos de Fala e a Linguística Recente".)
Searle terá começado a ver pelos olhos de Grice (na esteira de Wittgenstein, claro) a inclusão dos atos de fala na teoria da ação humana. Mas qual teoria da ação? E como se daria essa inclusão? Por exemplo, como conciliar as categorias formais já constituídas dos vários tipos de atos de fala descobertas analiticamente com a racionalidade pragmática da linguagem? Podia dispor do conceito de intenção apresentado por Grice e explicar o significado (convenção) linguístico de modo psicológico, pelo modelo da intenção reflexiva aplicado à intenção comunicativa linguística. Mas Searle a breve trecho vai desmarcar-se parcialmente de Grice, introduzindo a noção de representação, que não está (pelo menos explicitamente) presente em ``Atos de Fala".
O texto de 1974, ``Meaning, Communication and Representation", só publicado em 1986 numa homenagem a Grice, é decisivo e fundamental como nenhum outro para mostrar aquilo que se poderá ironicamente chamar uma ``recaída" de Searle no campo da metafísica clássica. Para além da intenção comunicativa e do seu reconhecimento pelo interlocutor, Searle diz que o fato de o falante proferir algo e querer dizer (significar) algo com isso é possível somente por meio de uma outra intenção de representar o mundo (por algum modo ilocutório).
Pela dissociação entre comunicar e representar (represento um estado de coisas, mas comunico a representação do estado de coisas, não o estado de coisas) está aberto o caminho para uma das teses principais de ``Intencionalidade": estados mentais intencionais representam as suas condições de satisfação (intencionalidade intrínseca) e o sentido a atribuir à palavra ``satisfação" seria originário. É a natureza do conteúdo intencional que determina as condições de satisfação e pertence ao estado mental (por exemplo, não há modo de eu ter um desejo sem que ele possua condições de satisfação). Ter a crença consciente que está chovendo é ter consciência que a crença está satisfeita se está chovendo, e não satisfeita, se não está chovendo; nesse sentido, ela é intrinsecamente uma representação. Seria então esta noção de satisfação (intencional) que é exportada para os atos de fala, enquanto ações que possuem o que Searle denomina ``intencionalidade derivada".
À parte todos os detalhes analíticos, deve-se chamar a atenção para uma dúvida que sempre assalta o leitor. É quase impossível deixar de pensar que a noção intuitiva de ``satisfação" não derive da linguagem: da experiência de cumprir uma ordem (ou desobedecê-la), de cumprir uma promessa (por oposição a não mantê-la) etc. É certo que Searle diz algures que uma análise das condições de satisfação (por contraste com as condições de verdade de uma sentença) ajuda a elucidar o que seja a ``satisfação" da crença ou do desejo -e além do mais a intencionalidade dos atos de fala, diria, é apenas uma transferência duma propriedade realizada no meu cérebro. Aqui despontam certas questões polêmicas que o naturalismo de Searle suscita: a primazia por ele atribuída à percepção e à ação (em detrimento duma psicologia filosófica fundada na crença e no desejo) como atividades intencionalmente mais primitivas no nosso processo evolutivo de adaptação ao meio; e, complementarmente, a tese de que o nosso sistema de estados mentais se efetua sobre o ``chão básico" de habilidades e procedimentos que são eles próprios não-representacionais. O neonaturalismo de Searle que coloca os estados mentais ``emergindo" (realizando-se) na estrutura física do cérebro, enquanto hipótese que permite ``fundar" a intencionalidade na natureza, não deixa curiosamente de lembrar, enquanto conceituação, a doutrina lockeana das propriedades primárias e secundárias, embora a questões dessa ordem já saibamos que Searle se limitaria a encolher os ombros -e daí?
Na fronteira entre filosofia, linguística, filosofia da ciência cognitiva e sociolinguística, os problemas levantados e a obstinada clareza com que os enuncia tornam os trabalhos de Searle um modelo de prosa filosófica analítica e ajudam cada um de nós a não se dar por (con)vencido.

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