São Paulo, segunda-feira, 2 de outubro de 1995
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Ismael e Murilo: entre amigos

DAVID ARRIGUCCI JR.

DAVI ARRIGUCCI JR.

Recordações de Ismael Nery
Murilo Mendes
Edusp, 152 págs.
R$ 15,00

Este livro singular é o depoimento sobre uma rara e fervorosa amizade entre dois artistas (1). O clima de amorosa exaltação que se cria desde as primeiras linhas poderia parecer esquisito, não se tratasse de Murilo Mendes escrevendo sobre Ismael Nery. Entre eles, o insólito vira regra. E Murilo talvez pudesse justificar-se com as simples palavras de Montaigne diante do inexplicável numa grande amizade, como a que o ligou a La Boétie: porque era ele; porque era eu (2).
Seria um equívoco pensar que o profundo vínculo que uniu esses dois seres extraordinários -um grande poeta e a promessa de um grande pintor, quebrada pela morte prematura- se tenha reduzido, nos 13 anos que durou, de 1921 a 1934, apenas à esfera das paixões ou dos afetos individuais. O testemunho que nos legou o poeta vai muito além da mera apologia do amigo, cuja personalidade ímpar parecia dotada de talento incomum em múltiplos campos: a pintura, o desenho, a arquitetura, a poesia, a dança, a filosofia, a teologia. Na verdade vale como documento do poder transformador da amizade, não só na formação de dois jovens artistas, mas sobretudo como instrumento poderoso de humanização no sentido mais amplo. A amizade como um sentimento capaz de ampliar as zonas da experiência e do saber, de incentivar o sonho e a imaginação e, ao mesmo tempo, de animar o desejo de realização pelo trabalho construtivo comum.
Assim, além de traçar o retrato memorável de um homem de tantos dons naturais, que sabia passar da mais cinzenta teoria à manifestação mais pura e ardente do simples desejo de viver, que não quis ser apenas pintor, ou poeta, ou filósofo, o livro permite avaliar a força construtiva da amizade, do ponto de vista social -o auge de perfeição da vida em sociedade, na visão de Montaigne. Por fim, nos abre, com generosidade, uma janela para a alma do autor, que é também a de um homem de grande nobreza espiritual.
É este decerto o principal documento que nos ficou sobre o modo de ser de Ismael Nery, apesar da ênfase, por vezes excessiva, nos traços de realce do retratado. A verdade é que ele aí está de corpo inteiro, em vibrante evocação: desde seu tipo físico até sua impressionante cara na morte; desde seu caráter e inclinações momentâneas, no dia-a-dia, até o fundo sem fundo de sua complexa espiritualidade.
Mas, esta breve história de uma amizade acaba sendo também um documento inestimável sobre Murilo Mendes, sobre alguns aspectos decisivos de sua formação, intimamente ligada à trajetória do companheiro de todas as horas. Foi Ismael que lhe revelou a dimensão religiosa de seu próprio espírito, ao mesmo tempo que o marcou com a paixão pelo conhecimento, com seus ``olhos de verruma", em permanente ``estado de pesquisa". É que, às perenes inquietações com o destino do homem e sua ``vocação para a transcendência", juntava o minucioso reconhecimento do mundo, estudando com a maior devoção a natureza e os fenômenos da existência, como se fosse um catalisador de grandes questões espirituais, mas apegado à terra dos homens, repensando altos problemas no chão do cotidiano, em que os compartilhava fraternalmente com o amigo.
Com ele, Murilo teria aprendido a ver, e por mais que aqueça suas palavras o fervor do entusiasmo, não se pode duvidar da profundidade da influência que essa afinidade eletiva terá exercido sobre o olhar do poeta. Não é preciso crer com Murilo que Ismael fosse ``um iluminado pelo Espírito Santo", para se reconhecer e tentar compreender a importância desse encontro e a profundidade da identificação. O poeta muda, de fato, a partir dele, e não é à toa que começa a perceber, como diz a certa altura, ``as afinidades entre o mundo físico e o moral, a interpenetração e fusão das formas, as diferenças entre forma e fôrma". Partilhavam perplexidades e o mesmo estranhamento diante do mundo. E assim: ``As coisas passavam a apresentar aspectos dantes apenas pressentidos". Entende-se como Ismael contribui para despertar ou estimular o visionário em Murilo, tornando-se essa amizade uma alavanca de mudança espiritual.
Realmente, estas ``Recordações" permitem seguir os passos de uma amizade no quadro histórico dos anos 20 e princípio da década de 30 no Brasil, como um índice importante da renovação de mentalidades que então se processava entre nós. Há uma reconstrução íntima do contexto externo, da chegada da modernidade, do movimento modernista e das contradições acirradas que vêm com o avanço do capitalismo e o desejo de atualização de certos setores da burguesia brasileira, posta diante dos tempos modernos, com os começos da industrialização e a emergência do movimento operário. É o momento histórico em que atuam poderosas tensões ideológicas, entre cosmopolitismo e nacionalismo, entre esquerda e direita, entre comunistas e fascistas (que eram antes verde-amarelamente integralistas). É o momento em que brotam as sementes de renovação católica a que iriam aderir intelectuais até então quase nunca religiosos, como foi o caso exemplar de Alceu Amoroso Lima (Tristão de Ataíde), cuja conversão se dá pela amizade com Jackson de Figueiredo, fundador da revista ``A Ordem" (1921) e do Centro D. Vital (1922), demonstrando que a renovação cristã nem sempre se fazia pelo lado libertário de Ismael Nery. É quando vem à tona da consciência crítica a realidade brasileira, encarada como problema, ao mesmo tempo que os espíritos se deixam siderar pelas novas correntes de pensamento vindas de fora e pelas vanguardas artísticas internacionais, como se dá com os intelectuais ligados ao modernismo, empenhados no grande movimento de transformação da inteligência brasileira, que tem à frente a lucidez crítica de Mário de Andrade.
Quando Murilo descobre Ismael -um belo dia vê um moço elegante e bem vestido que entrara para desenhista da seção de arquitetura e topografia na Diretoria do Patrimônio Nacional, onde trabalhava em 1921- o futuro amigo acabava de chegar da Europa com a cabeça cheia de exposições, museus e novas idéias sobre o conceito de artista. É interessante acompanhar o fascínio da descoberta do novo que se revela para Murilo desde esse primeiro encontro e parece itinerante, que aí começa e, de certo modo, não cessa nem sequer com a morte de Ismael, aos 33 anos, em 1934, pois seus ecos continuam a repercurtir nos passos e na obra de Murilo.
Esse diálogo não é de forma alguma um fato isolado naquele momento, contra o pano de fundo do movimento modernista que valorizou muito a vida de relação e o debate intelectual, mas é, sem dúvida, um diálogo cercado por uma atmosfera muito peculiar. É que parece vincado pela tensão espiritual e também pelo entrecruzamento fantasioso de emoções e desejos, de modo que no espaço em que se realiza se cria um clima diferente, estranho, no qual paira de vez em quando a figura velada e enigmática da poeta Adalgisa Nery, mulher de Ismael. E esse clima volta por vezes ao texto destas memórias. Parece natural que, ao evocar-se o pintor, venham também à lembrança imagens de seus quadros, onde a imaginação reina de mãos dadas com uma sexualidade bastante livre, exasperada na exaltação carnal dos nus e dos órgãos sexuais, na graciosa plástica das figuras femininas, ambígua na confusão dos sexos e na perseguição de andróginos esvoaçantes, mas propícia aos abraços concretos, aos encontros insólitos e aos enlaces abstratos do pensamento, a uma busca intelectual constante pela aproximação e identificação das mesmas figuras recorrentes. Nos quadros ou nos debates intelectuais, a meditação filosófica ou religiosa não se apartava da sexualidade, nesse católico ímpar.
Até onde se pode avaliar da perspectiva de hoje, a troca de idéias do grupo de Ismael se deu, assim, num ambiente bem diverso de outros da mesma época, como foram, segundo se sabe, o da casa de Mário de Andrade, na rua Lopes Chaves, em São Paulo, ou o da casa de Aníbal Machado, um dos centros importantes da vida literária carioca desse tempo.
O fato é que uma roda ampla de outros amigos no Rio participa também da conversa, e parte da preocupação do autor destas ``Recordações" consiste em ressaltar as relações de Ismael com o grupo, reunido muitas vezes na pequena casa de Botafogo: Jorge Burlamaqui, Antonio Costa, Mário Pedrosa, Antônio Bento, Guignard e o próprio Murilo eram os mais fiéis. Mas a roda era muito maior e instável, pois a mesma singularidade do dono da casa que atraía as pessoas mais diversas -médicos, poetas, homens de teatro, amadores de filosofia e teologia-, pela capacidade de interlocução agradável nos terrenos mais variados, também as afastava pela tensão constante de espírito que exigia.
Um dos pontos principais da conversa entre os amigos girava em torno da filosofia de Ismael, batizada pelo próprio Murilo como ``essencialismo", pela abstração do

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