São Paulo, segunda-feira, 2 de outubro de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Inflação na primavera

JOÃO SAYAD

Uma economia sem inflação tem que funcionar assim: sobe o preço do chuchu porque não choveu, ou da gasolina, porque o governo autorizou; outros preços têm que cair exatamente na mesma proporção para que a média de todos os preços permaneça estável. Os estudantes sabem como isto é difícil: tirou quatro em matemática, precisa tirar seis em história para ter média cinco.
Aliás é mais difícil do que passar de ano: o estudante passa de ano se tirar notas acima da média, oito em matemática e dez em história, por exemplo. No caso de inflação é mais difícil do que passar de ano -a média precisa ser exatamente igual a zero, nem maior, nem menor. É uma missão impossível, um evento tão pouco provável como ganhar na Sena.
Como é que fazem as economias de moeda estável? Não existem economias de moeda estável. Depois de 1945, temos economias com inflação rastejante, economias com inflação latina como as da América do Sul nos anos 50-70, economias com inflação de dois dígitos como os Estados Unidos e a Europa no final da guerra do Vietnã, economias com superinflação como o Brasil, Argentina, Chile, México e Bolívia nos anos 80. Mas não temos economias com moeda rigorosamente estável. É quase impossível.
Antes de março de 1933, os diversos países do mundo tinham às vezes inflação, às vezes deflação. Em março de 1933, acabou-se a mais dolorosa crise de deflação que o mundo conheceu neste século acompanhando a grande depressão de 29, um fenômeno tão desagradável quanto a inflação. Se a inflação esfola, a deflação mata.
Nunca mais houve deflação no mundo. Para entender inflação e como controlá-la é preciso pensar um pouco porque não existe mais deflação. O meteorologista que prevê o clima para o final de semana, precisa antes saber porque Nova York é mais fria do que São Paulo que é mais fria que Maceió. Só depois é que pode se dar ao luxo de prever se chove ou não chove amanhã.
Antes de março de 1933, quando vigorava o padrão ouro, as moedas americana e inglesa tinham valor porque representavam uma certa quantidade fixa de gramas de ouro. Assim, José vai à feira toda a semana e compra chuchu e sabão em pó.
Antes de 1933, o salário do José era pago em uma moeda que valia ouro. Sobe o preço do sabão, José prefere ficar com o seu rico dinheirinho que vale ouro. Não se vende sabão em pó. Se cair o preço do chuchu, porque choveu na hora certa, cai o preço do chuchu, José acha que o seu dinheiro está ainda mais valioso, porque representa ouro, não compra nem chuchu nem sabão em pó.
Começa uma deflação. No padrão ouro a moeda é adorada porque vale ouro. E por que o ouro tem tanto valor? Isto já é perguntar demais. Há perguntas que não têm respostas, mistérios da vida capitalista. O ouro é valioso porque os faraós do Egito gostavam de ouro e os segredos desta escolha foram enterrados em urna funerária que até hoje não foi achada.
Depois de 1933, a moeda não vale mais ouro. Seu valor está associado ao poder de compra da moeda, calculado por algum instituto de pesquisa, como a Fipe e a FGV. Não é mais querida por si mesma. Vale porque pode comprar uma cesta básica ou um conjunto de bens que a classe média ou baixa costuma comprar.
Neste caso, o valor da moeda se complica. José vai à feira, sobe o preço do chuchu, não cai o preço do sabão em pó, a Fipe anuncia que houve inflação. José compra o chuchu e compra sabão em pó também, pois já viu que sua moeda não vale muito. E no dia seguinte, reúne-se com os companheiros pedindo mais dólares ou mais reais pelas oito horas diárias de seu trabalho que afinal estão valendo menos. Temos uma economia com viés inflacionário.
Para combater esta inflação é preciso criar algum tipo de amor pela moeda, alguma ilusão monetária. Em 1994, o Plano Real tornou a moeda querida porque ela vale dólares. Em 1990, a Argentina fez a mesma coisa. Por que o dólar? Novamente, uma pergunta cuja resposta pertence aos faraós.
Existe uma regularidade estatística e histórica para a estabilidade da moeda: sempre que índices de preço forem calculados e observados por empresários e trabalhadores, temos um problema sério de estabilidade da moeda. Foi o que aconteceu no período posterior à Primeira Guerra Mundial quando todos os países se envolveram no cálculo do poder de compra de suas moedas para fixar o câmbio.
Acabou na grande depressão de 29. É o caso das economias européias e americanas hoje. Sobe o preço das commodities (chá da Índia, alumínio da Austrália, soja do Brasil), o banco central americano acha que o poder de compra da moeda americana vai cair, aumenta a taxa de juros. Não precisamos de exemplos tão distantes: esta é a história da inflação brasileira desde 1967, quando começou o processo de indexação e tivemos inflação do chuchu em 1973, inflação dos barbeiros em 1978 e acabamos com a superinflação dos anos posteriores a 1983.
Se a moeda só vale pelo seu poder de compra, medido por um índice de preços, todos querem acompanhar o índice. Aumentou o preço do pão francês, não uso pão para produzir automóveis, mas aumenta o preço dos automóveis. Quando ninguém ama a moeda, instala-se o reino da inveja -quero porque você tem e eu não tenho. Caminha-se rapidamente para a superinflação.
A vida não é mais fácil quando a moeda é muito querida. Neste caso, a inveja se dirige ao ouro, se estivermos num regime de padrão ouro. Se o preço subir, prefiro ficar com o ouro; se os preços começarem a cair, imagino que vão cair mais e guardo mais moeda ainda. A paixão pela moeda acaba em deflação e crise.
Esta é a história do mundo quando olhamos para o século que se acaba. Uma oscilação permanente entre deflação e inflação. A estabilidade do valor da moeda depende do que os economistas chamam de ilusão monetária e consideram irracional. Os japoneses de hoje, por exemplo, carregam maços de moeda nos bolsos, notas grandes e limpas. Diz-se até que existem tinturarias que lavam e passam os ienes. No Brasil, um ano apenas após o lançamento dos reais, já encontramos notas sujas e despedaçadas.
Neste início de primavera, o Brasil ganhou uma inflação menor do que 1%. É uma flor delicada que exige cuidados e carinhos especiais -nada de correção de preços de gasolina ou desvalorizações cambiais apressadas. Pois a estabilidade da economia capitalista é frágil, depende de um mistério, uma pergunta sem resposta. A moeda precisa ser amada, mas nada de paixões -um amor exagerado leva à deflação. Um romance passageiro é inflacionário. A estabilidade da moeda depende de um amor maduro e outonal que não pede explicações.

Texto Anterior: Simpósio vai discutir negócios no Mercosul
Próximo Texto: Longa vida, eterna crise
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.