São Paulo, segunda-feira, 2 de outubro de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Viúvas da recessão

PAUL SINGER

O noticiário recente sobre o Plano Real me traz à lembrança um dito de Lincoln, cuja inesgotável sabedoria política deveria ser consultada com mais frequência. Dizia o grande abolicionista norte-americano que era possível enganar a muitos durante algum tempo, enganar a poucos durante muito tempo, mas não era possível enganar a todos o tempo todo.
As tiradas em defesa da política econômica oficial tentam em vão o que Lincoln disse que não era possível. É a tentativa de fazer render o mesmo feito incessantemente e apagar da consciência coletiva o preço que todos pagam pelos erros cometidos, sempre negados até que são inopinadamente corrigidos por medidas casuísticas.
Quem ainda se recorda da redução abrupta das tarifas aduaneiras sobre automóveis e outros bens duráveis e de sua precipitada elevação poucos meses depois? Ou da transformação de um superávit comercial de US$ 6,78 bilhões (no primeiro semestre de 94) num déficit de US$ 4,27 bilhões no primeiro semestre deste ano?
De acordo com a nova sabedoria oficial, ``é sabido que o câmbio caiu porque o país tem um superávit estrutural nas suas contas externas". É uma pena que não nos tenham contado antes. A queda se deu entre julho e setembro do ano passado, quando o real se tornou moeda. E tão estrutural era o superávit que, seis meses depois, o próprio Banco Central se viu obrigado a desvalorizar a nova moeda e adotar bandas de variação da taxa cambial.
O superávit ``estrutural" se devia exclusivamente à entrada maciça de aplicações externas de curto prazo, que nos abandonaram precipitadamente quando o superávit ``estrutural" mexicano ruiu em dezembro de 1994. Agora as mesmas aplicações externas estão voltando, atraídas por nossa estratosférica taxa de juros. O que permite ao oficialismo triunfante prever que ``com crise do México e tudo, o país vai terminar 1995 com reservas maiores em US$ 10 bilhões". Até que algum susto faça o capital especulativo levantar vôo de novo. A palavra ``estrutural" serve para muita coisa mesmo.
Desde o começo do Plano Real, o oficialismo não admite perdedores, pois no Brasil, quando a inadimplência estoura, a agricultura perde bilhões pelo desrespeito aos preços mínimos e dezenas de milhares são despedidos -e o governo nada tem a ver com isso. De acordo com versão oficialista, ``o juro subiu, o nível de atividade ficou onde estava, as contas externas em ordem e os preços cederam". Maravilha.
Só que a subida dos juros foi justificada pelo fato de a demanda estar superaquecida, o que colocaria em perigo a estabilização. Depois que o crédito foi cortado, a demanda desabou e, portanto, a atividade não ficou onde estava, mas foi lá para baixo. E não só em São Paulo. Dados recentes do IBGE indicam que a produção industrial brasileira, em junho, foi cerca de 10% inferior à de dezembro de 94. É provável que nos meses seguintes a queda da produção industrial tenha aumentado. Como dizia Lincoln, não vai dar para fazer colar esta, o tempo todo, para todos.
De acordo com o pensamento oficial, ``as maiorias beneficiadas pela estabilização permanecem mudas... As minorias organizadas querem a inflação de volta". Quem são as ``minorias" organizadas? As centrais sindicais dos trabalhadores? As entidades empresariais, que juntamente com os sindicatos estão protestando contra a recessão, produzida pela política monetária?
É muito fácil atribuir aos adversários intenções sinistras e atribuir a si mesmo todos os benefícios da estabilização. Tenta-se vender assim ao país que a estabilidade dos preços só pode ser mantida mediante políticas que destroem o investimento e agravam o desemprego. E quem se opuser, denunciando as perdas, e propuser políticas alternativas de estabilização é rotulado de ``viúva da inflação".
Acontece que é possível estabelecer controles sociais dos preços sem decepar a demanda efetiva, assim como é possível abrir o mercado interno de um modo que preserve o parque industrial do ``dumping" social. Não existe apenas uma política econômica que possa combinar estabilização com desenvolvimento e, para defender a que se pratica, não vale estigmatizar os críticos.
De acordo com o oficialismo, ``o desemprego, especialmente quando ocorre durante fases de crescimento, reflete mudanças de natureza estrutural". Este seria o caso do Brasil e, portanto, para evitar mais desemprego, o melhor seria flexibilizar a legislação trabalhista.
E, entusiasmado com a idéia, o defensor da política oficial pergunta: ``Por que não, por exemplo, suspender a cobrança de todos, ou quase todos, os encargos trabalhistas durante seis meses?" Acontece que o desemprego está ocorrendo numa fase em que o crescimento é negativo, como é notório.
A proposta da suspensão dos encargos trabalhistas é no mínimo impertinente. Mas é também irresponsável. Só serve para insinuar que o culpado pelo aumento do desemprego é o próprio trabalhador, que exige respeito pelos seus direitos, aposentadoria, FGTS etc. Ou, quem sabe, de alguma minoria organizada que quer a volta da inflação?
PS - Qualquer semelhança com o artigo de Gustavo Franco, publicado neste espaço em 24/9 último, não é bem coincidência. São deste artigo as citações. Pretende mostrar que este tipo de retórica pode ser aplicado também para denunciar os denunciadores.

Texto Anterior: FINO TRATO; A ARTE DO SÉCULO; FIM DE CARREIRA?
Próximo Texto: Povo fora do controle do Orçamento e do Judiciário
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.