São Paulo, segunda-feira, 2 de outubro de 1995
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Povo fora do controle do Orçamento e do Judiciário

MODESTO CARVALHOSA

A política do ``povo tem cheiro de cavalo" (numa alusão à célebre frase atribuída ao ex-presidente Figueiredo) está de volta neste primeiro ano de mandato dos congressistas e ocupantes do Executivo. Lamentável verificar que, num retrocesso inexplicável para um novo governo que esperava-se o mais avançado em direitos da cidadania, esteja ele, ``pari passu" com setores do Congresso, empenhado na eliminação da participação da cidadania no controle do Estado e de seus ocupantes.
Vamos direto a dois assuntos. O Congresso Nacional, ainda traumatizado com o escândalo trazido pela CPI do Orçamento, em que quadrilhas de parlamentares e altos funcionários do Executivo saquearam milhões dos cofres públicos, teve a feliz iniciativa de aprovar o projeto de lei nº 3 de 1995, que dispõe sobre as diretrizes para a elaboração da lei orçamentária de 1996.
Dentre outras providências moralizadoras na formulação e execução daquele instrumento, consta o art. 54, que determina: ``O Poder Executivo publicará e distribuirá síntese da proposta e da lei orçamentária, em linguagem clara e acessível ao cidadão em geral, autorizando sua reprodução".
Essa regra de transparência atende a tudo que de moderno no combate à corrupção tem se proclamado e promovido no mundo, ou seja, de que a única maneira de inibir a apropriação dos recursos públicos pelas gangues que os manipulam no interior do Estado é o controle social por meio de ampla divulgação, em linguagem acessível ao povo, dos orçamentos e sua execução tanto no plano federal como estadual e municipal.
Todos sabem que as peças orçamentárias neste país são expressas em linguagem inacessível a quaisquer pessoas que não sejam os seus próprios formuladores que, num hermetismo proposital para que ninguém alcance o mínimo entendimento, permitem todo o tipo de manipulação por aqueles altos funcionários, lobistas, parlamentares, governadores e prefeitos interessados na apropriação privada dos bens públicos.
A demanda de uma mudança radical de linguagem orçamentária, tornando-a plenamente acessível ao controle da cidadania, foi inclusive objeto de deliberação da Reunião do Grupo do Rio, havida em Quito em setembro de 94, para discutir a corrupção na América Latina.
E o que ocorreu com o citado art. 54, aprovado pelo Congresso? Foi vetado pelo presidente da República, sendo as razões do veto tão evasivas, herméticas e propositadamente confusas quanto as próprias peças orçamentárias cuja transparência seria alcançável se fosse sancionada aquela salutar medida. Mas em matéria de política de supressão do controle da cidadania a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara Federal não fica atrás do Poder Executivo.
Em 12 do corrente esta comissão declarou ``inconstitucional", sob o pretexto de invasão da autonomia dos poderes, o dispositivo que prevê a participação de cidadãos no órgão central encarregado de avaliar o ``desempenho administrativo" da magistratura.
Para nossa surpresa, a relatora da proposta, deputada Zulaiê Cobra (PSDB-SP), é ativa militante e conselheira da OAB, a instituição que mais defendeu e defende os direitos da cidadania e sua participação na vida política do país. O novo instituto (estilo ``nóis com nóis") será mais um monstrengo, constituído de um conselho federal e 27 estaduais que se restringirão a analisar o desempenho administrativo e financeiro dos tribunais.
Esse parto da montanha demonstra o nível de despreparo e leviandade dos seus autores ao criarem dezenas de órgãos custosos e inúteis, travestidos em Tribunais de Contas da Magistratura, embora compostos, em sua maioria esmagadora, pelos próprios magistrados.
Ora, o que o controle externo da magistratura deveria tratar é exatamente da conduta dos magistrados no exercício de sua atividade judicante. É para isso que existem os Conselhos de Magistratura europeus, de secular tradição.
Entre nós, para darmos alguns exemplos levantados, somente em 1993, da prevaricação e outros delitos praticados no seio da magistratura, temos: juiz da Justiça Federal de São Paulo afastado por atos de favorecimento ao ex-governador Orestes Quércia na questão de importação de equipamentos de Israel, com o agravante de ameaçar por carta o ex-presidente do próprio TRF; juiz da 3ª Vara Cível de Porto Alegre, afastado e substituído em razão de atos de corrupção e favorecimento à Petroplastic na disputa judicial pelo controle acionário da Petroquímica de Triunfo S.A.
Escândalo envolvendo juízes classistas diante de privilégios especiais, tais como salários milionários e aposentadorias escandalosas; 17 juízes do Maranhão afastados de suas funções, sob a acusação de concessão irregular de termos de posse provisória de veículos furtados. Indiciamento de juízes no Estado do Rio de Janeiro envolvidos em fraudes contra o INSS de cerca de US$ 300 milhões; 15 juízes e um desembargador de Pernambuco sob sindicância em razão de denúncia de corrupção.
Pelo que se vê dessa pequena e já defasada amostragem, um Conselho de Controle da Magistratura não poderia ficar ridicularmente adstrito a um arremedo dos tribunais de Contas, deixando que a probidade no exercício da função judicante fuja desse mesmo controle. Daí mais uma razão pela qual é inadmissível a exclusão da participação direta da cidadania num órgão que efetivamente viesse a fiscalizar a sagrada missão que é a de julgar.

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