São Paulo, segunda-feira, 2 de outubro de 1995
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Duas leis reitoras

DARCY RIBEIRO

O que me faz um intelectual atípico foram vivências raras que tive e que me conformaram. Foram os anos que passei com os índios, aprendendo com eles a ser humana gente. Foi também o convívio simultâneo, nas fronteiras da civilização, com o brasileiro comum que vive lá, com suas caras feias, sua magreza esquelética, sua gesticulação espantosa. Gente que pasmada vê o mundo como uma armadilha em que uns poucos senhores, totalmente imprevisíveis, tudo podem. Até não ser ruins. Rarissimamente. Eu os vi chorando diante de bois que derrubavam as cercas com os chifres para comer suas rocinhas. Eles não podiam fazer nada, as terras em que tinham vivido desde sempre pertenciam agora a quem tinha um papel de cartório, dizendo que era o proprietário.
A propósito, conto a vocês uma conversa que tive com um índio muito inteligente -o cacique Juruna. Ele me perguntou um dia quem é que inventou o ``papé". Eu quis explicar como é que se fabrica papel com madeira esmagada. Juruna reclamou que queria saber é do ``papé" verdadeiro. Esse que levado na mão de um homem o torna dono de terras que nunca viu e onde um povo viveu por séculos.
Os posseiros que encontrei pelos matos são os equivalentes nativos dos pioneiros norte-americanos que vemos nos filmes de bangue-bangue viajando em suas carretas para os goiases de lá. O destino de uns e outros foi forjado por duas leis. A nossa, sagacíssima, afirma desde 1850 que a simples posse da terra não dá direito a nada. A norte-americana, promulgada dez anos depois, garantia a quem fosse para o Oeste, fizesse uma casa e uma roça e lá permanecesse por cinco anos o direito de demarcar como sua uma granja familiar de 30 hectares.
As consequências das duas leis são opostas. Aqui, deu lugar à expansão do latifúndio, com o poder de manter a terra improdutiva, mesmo que o povo morra de fome. Monopolizando a terra, sem nenhuma obrigação de usá-la, obriga todo trabalhador rural que sai de uma fazenda a cair em outra fazenda igual. Superexplorado e desestimulado para o trabalho, sem qualquer esperança de ter um dia sua terrinha para plantar mandioca e milho, alimentar seus filhos, suster-se e existir como gente livre e autônoma.
A lei ianque fez criar uma nação de milhões de granjeiros livres. Esforçados, porque trabalhavam para si mesmos. Eles deram as bases para a prosperidade da América do Norte.
O efeito mais grave da institucionalidade fundiária brasileira foi a expulsão precipitada da população do campo, inflando cidades despreparadas para recebê-las, enchendo as favelas e as periferias de núcleos humanos que se contam entre os mais miseráveis do planeta.
Demonstra-se, desse modo, que uma simples lei, aparentemente mutável, mas espantosamente forte e persistente, possibilita que uns poucos mil latifundiários condenem a um destino infernal cerca de 100 milhões de brasileiros pobres e paupérrimos.

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