São Paulo, terça-feira, 3 de outubro de 1995
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O cidadão e o servidor

LUIZ CARLOS BRESSER PEREIRA

A decisão que a Comissão de Justiça tomará hoje sobre a admissibilidade da proposta do governo de emenda constitucional da administração pública será um divisor de águas no Brasil. Um divisor entre aqueles que acreditam em um Brasil moderno e justo, em que o Estado está voltado para o atendimento dos cidadãos, ao mesmo tempo que valoriza seus servidores, e aqueles que vêem no Estado o bastião de interesses clientelísticos e corporativistas inconfessáveis.
O parecer do deputado Prisco Viana poderia ter-se atido à função específica da Comissão de Justiça na análise das propostas de emenda constitucional: verificar se seus dispositivos contrariam as cláusulas pétreas da Constituição Federal. Nesse caso, deveríamos nos resumir a uma discussão jurídica do problema. Deveríamos mostrar como nenhuma das modificações propostas fere os princípios básicos da democracia republicana e federativa em que vivemos.
Mas essa demonstração é quase desnecessária. As cláusulas pétreas não foram atingidas, a não ser que se dê a elas uma amplitude tal que se torne impossível modificar qualquer dispositivo constitucional. Argumenta-se que a emenda do governo não respeita o direito adquirido dos atuais servidores à estabilidade. Ora, a emenda em nenhum momento faz qualquer afirmação do tipo ``não prevalecendo os direitos adquiridos". Os bons constitucionalistas -e há excelentes na Comissão de Justiça- sabem que, contra a Constituição, não prevalecem direitos adquiridos.
Entretanto, se estes existem, o servidor demitido ou exonerado com base nos novos dispositivos constitucionais não terá dificuldade em arguir seus direitos nos tribunais. É o relator que não acredita na existência desses direitos quando apresenta uma emenda obviamente de caráter substantivo, em que afirma que os atuais servidores terão direitos adquiridos assegurados.
Outro argumento jurídico insubsistente afirma que estabelecer um teto para a remuneração dos servidores e agentes públicos baseado no salário do presidente seria ferir a autonomia dos três Poderes. Ora, o atual texto constitucional no seu art. 37 já estabelece esse teto: os salários do Legislativo e do Judiciário não poderão ser superiores aos do Executivo. Mas essa determinação não vem sendo obedecida ao se excluírem dos vencimentos as vantagens pessoais. O que a emenda faz é simplesmente especificar melhor esse dispositivo, deixando claro que na remuneração estão incluídas todas as vantagens recebidas. Como, então, pode ser inconstitucional algo que já está na Constituição?
O relatório não apenas tendeu a considerar tudo o que tivesse uma relação, ainda que longínqua, com as cláusulas pétreas como inconstitucional, mas ainda por cima entrou no mérito da questão abertamente.
Assim, não cabe outra alternativa aos partidos que apóiam o governo que não rejeitar integralmente o parecer. Na verdade, essa é a única alternativa que resta àqueles que estão indignados com a existência, dentro do serviço público, de: 1) funcionários que trabalham sem motivação nem competência ou 2) que simplesmente não trabalham porque são excedentes ou 3) que recebem remunerações muito superiores às do presidente da República ou 4) que recebem aposentadorias muito superiores às remunerações correspondentes dos servidores em atividade. Esses privilégios são hoje no Brasil um dos escárnios da cidadania. A proposta do governo os elimina.
Essa reforma não tem apenas o apoio dos cidadãos que pagam impostos e são mal servidos, dos governadores e prefeitos que querem governar e não podem e da imprensa que traduz a indignação geral. Essa emenda tem também o apoio dos bons servidores públicos, que são a grande maioria. Estes sabem que existem entre eles funcionários que pouco ou nada trabalham, sabem também que salários e aposentadorias de marajás são ainda frequentes no Brasil, não apenas nos Estados, mas também na própria União. E têm plena consciência de que esses fatos desmoralizam sua profissão.
Ser servidor público é uma vocação. Implica em um compromisso ético com a sociedade e em ver o trabalho de cada dia como uma missão fundamental para o país, porque esta envolve a própria afirmação do Estado nacional, fundamental para a justiça social, porque é por meio do servidor público que o Estado pode corrigir as injustiças na distribuição de renda e promover o desenvolvimento econômico.
Os bons servidores sabem disso. Veja-se este exemplo. Recente relatório de pesquisa do Banco Mundial, analisando a extraordinária experiência de descentralização e participação no sistema de educação básica do Estado de Minas Gerais, em um determinado momento afirma: ``Os professores, apesar de críticos à escola, gostam do que fazem e crêem ser portadores de uma missão".
``Gostariam de ter uma carreira estruturada e salários condignos à sua importância social. Sentem, entretanto, haver maior racionalidade no sistema privado de ensino porque os capazes são sempre recompensados com a permanência e os incapazes premiados com a dispensa... Existem evidências de professores que estariam abertos a trocar benefícios profissionais pela estabilidade" (Banco Mundial, ``Colegiado: a Comunidade dentro da Escola", 1995, p. 5).
Está claro porque a votação desta semana da Comissão de Justiça será um divisor de águas. Estou, porém, tranquilo quanto ao seu resultado. O Brasil já não está mais sujeito ao domínio do patrimonialismo burocrático nem do corporativismo tacanho. O Brasil mudou muito nestes últimos anos e para muito melhor. Seu rumo já foi traçado. Com a eleição de FHC, um grande pacto social e político foi celebrado em torno de um grande projeto de desenvolvimento com justiça social e de modernidade pautada pelo interesse nacional.

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