São Paulo, terça-feira, 3 de outubro de 1995
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O campo na questão social

MARIO CESAR FLORES

Por força de seu impacto na ordem jurídica e no regime da propriedade, a questão social no campo vem sendo tratada como parametrada fundamentalmente pelo problema dos ``sem-terra". Esse problema é parte importante da questão, mas não a esgota: tão ou mais importante é o da pequena agricultura ou agricultura familiar.
O modelo capitalista urbano do Brasil admite e estimula a pequena empresa, mas no campo insistimos no rumo inverso, que sacraliza a média ou grande empresa -herança do passado latifundiário agroexportador, revitalizado pelos grãos nas décadas recentes.
Financiamentos privilegiados, incentivos, garantias e apoios infra-estruturais (inclusive a pesquisa agropecuária paga pelo Estado) fertilizaram a agricultura empresarial, enquanto que os pequenos produtores, candidatos naturais a membros de uma sociedade democrática de mercado socialmente justo, eram condenados à proletarização e ao êxodo rural ou, quando muito, à agricultura de subsistência frágil e complementar como a praticada no passado colonial.
A cultura multissecular resiste às mudanças. Congresso (quantos da ``bancada ruralista" são pequenos produtores?) e imprensa vão fundo no problema da grande agricultura com seus corolários financeiros e de apoio, estendendo além do ``tempo colonial" agroexportador (produção especializada com tecnologias dirigidas, separação entre propriedade/gestão e trabalho assalariado) a idéia de que nossa vocação agrícola se concentra na propriedade média e grande.
Já os defensores do pequeno produtor (propriedade/gestão e trabalho unidos, diversificação da produção, trabalho predominantemente familiar, assalariado complementar) têm sido relativamente frágeis diante da velha cultura.
Na prática, a por vezes propalada preocupação com a agricultura familiar vem sendo mal traduzida em medidas de apoio, sob a alegação de dificuldades financeiras -razão questionável porque as necessidades são diminutas- e por se creditar a elas um potencial de uso político local -o que é verdade para todos os recursos públicos dispersos, como é o caso da saúde: a solução é o controle, não a morte da prática. No fundo, a maior razão é a apatia pela pequena agricultura!
Será que o Brasil só deve se dedicar aos seus cerca de 500 mil estabelecimentos de agricultura empresarial, deixando ao léu os cerca de 6,5 milhões do modelo de agricultura familiar? Não é preciso ser um ``expert" para afirmar que estamos errados, insistindo na prioridade quase excludente para a grande produção especializada em que o mercado externo predomina sobre o interno.
Além de não ser economicamente desprezível -a pequena agricultura supera a empresarial na produção de vários itens de subsistência-, o modelo familiar tem dois papéis na solução da questão sociopolítica: ele contém a migração interna, porque absorve muita mão-de-obra no campo e apóia a construção de uma democracia não apenas política, mas também social; esse papel sociopolítico crescerá com a reforma agrária, cujos beneficiários serão inseridos na chave socioeconômica dos pequenos proprietários rurais.
O argumento de que o futuro só tem espaço para a empresa agrícola de alta tecnologia e baixo uso de mão-de-obra (a exemplo dos EUA, cuja imensa produção agrícola emprega 3% da população) não é, no futuro previsível, válido para o Brasil. É inviável o salto para o modelo norte-americano e, por alguns decênios, ainda vamos precisar manter muita gente no campo, pouco tentada à aventura urbana, onde a indústria (crescentemente menos necessitada de mão-de-obra) e os serviços não serão capazes de absorver ondas migratórias.
O apoio à pequena agricultura se justifica, portanto, por sua produção e como instrumento de uma economia capitalista socialmente saudável, evitando-se assim que sua gente venha a aumentar a intranquilidade rural (e, com o êxodo, a urbana).
Nesse sentido, é preciso que o poder público resolva alguns problemas como: organização dos produtores, crédito rural operacionalizado sem meandros esterilizadores, pesquisa agropecuária adequada e complementada por programas de disseminação de tecnologia, influência dos atravessadores, acesso à educação, assistência à saúde e capacitação para o gerenciamento de pequenas propriedades e proteção indispensável à vista da importação barata.
Esta última medida pode parecer um paradoxo em época de abertura de mercado, mas ela se impõe pelo valor social da pequena agricultura e por seu caráter estratégico: seria aceitável que a alimentação dependesse intensamente da importação, sujeita aos fluxos e refluxos inerentes à agricultura?
Parte dessas medidas cabem na alçada descentralizada dos municípios (organização, disseminação de tecnologia, educação, saúde, outras?), mas os Estados e a União têm papéis a exercer, em particular na viabilização do crédito (pequenos financiamentos não deixam o Banco do Brasil ``feliz", mas ele precisa justificar socialmente sua existência estatal...) e na pesquisa técnica. Tudo isso se encaixa nas preocupações sociais do governo, a serem atendidas em cooperação com prefeituras e organizações comunitárias ou corporativas.
A agricultura empresarial de vulto pesa no ``status" econômico do país, mas a justiça social interna passa pela melhora (solução completa só a longo prazo) do problema do acesso à terra e também pela imprescindível viabilização de seu uso com dignidade, em nível de agricultura familiar, num contexto de economia de mercado com preocupação social.

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