São Paulo, quinta-feira, 5 de outubro de 1995
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Brasileiro não pode viajar

PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.

A meu pai
Desculpem, mas volto a citar Nelson Rodrigues, uma das minhas fixações recentes. À sua maneira despretensiosa e bem-humorada, foi um dos grandes conhecedores do Brasil e da alma brasileira. As suas crônicas de jornal, que vêm sendo reeditadas por Ruy Castro, revelam mais sobre o nosso país do que muita obra "de fôlego" de sociólogos, economistas etc. (Aliás, esses últimos provocavam nele um "divertido horror".)
Um dos axiomas fundamentais da sua filosofia era que "brasileiro não pode viajar". O brasileiro, quando viaja, dizia, mesmo que por pouco tempo, volta com "um sotaque físico e espiritual.
Um inglês é sempre um inglês em qualquer parte do mundo; um americano ou alemão, idem, idem. Um francês nem se fala. (Conheço um que mora no Brasil há mais de 40 anos, é casado com brasileira, não voltará a residir na França, mas não consegue aprender a falar português corretamente nem a tiro.)
Já o brasileiro é de uma permeabilidade total e instantânea, especialmente em contato com o chamado Primeiro Mundo. Provincianos irremediáveis que somos, poucos sabemos do que acontece no resto do planeta (na verdade, o brasileiro só se preocupa realmente com o que acontece no Brasil).
Em compensação, somos imbatíveis na facilidade com que absorvemos tudo quanto é chavão, modismo internacional e, quando o dinheiro permite, a última novidade em matéria de consumo.
Um "idiota da objetividade" poderia indagar: o que vêm fazer essas considerações vagas sobre caráter nacional numa coluna de opinião econômica? Já explico, já explico. É que, nos últimos anos, os nossos economistas e a nossa política econômica têm sido, de maneira geral, uma ilustração quase perfeita da frase que dá o título a este artigo.
Muitos dos mais destacados economistas brasileiros ficaram reduzidos à condição de propagadores dos dogmas que correm o mundo para uso de países incautos. A política econômica brasileira vem consistindo quase sempre de uma adaptação passiva aos preceitos que a "comunidade internacional" considera próprios para países como o Brasil.
Como dizia meu pai, que teria feito 66 anos ontem, o Brasil foi convertido em um laboratório, onde a burocracia do FMI, do Banco Mundial e os representantes locais do ideário dominante buscam aplicar doutrinas temerárias para as quais não há, inclusive, eco na política econômica praticada nos países desenvolvidos.
Parece-me que esse processo foi bastante facilitado pela circunstância de que uma grande parte da nossa tecnocracia econômica vem sendo formada, ou deformada, por atividades profissionais ou estudos no exterior.
Não me entendam mal. É óbvio que a formação técnica dos estudantes brasileiros tem muito a ganhar, por exemplo, com o estudo nas melhores universidades estrangeiras, especialmente quando se considera o estado muitas vezes deplorável em que se encontra o ensino superior no Brasil.
O problema é que brasileiro não pode mesmo viajar.
Vamos exemplificar, começando pelo alto. Vejam, por exemplo, o caso do nosso ministro da Fazenda. Trata-se, sem dúvida, de um eminente economista brasileiro. Digo isso sem a menor sombra de ironia, pois tenho por ele simpatia e apreço pessoal, além de respeito pela sua capacidade profissional. Mas já me acostumei a vê-lo fazer e dizer as coisas mais espantosas, com um sotaque inconfundível.
No início dos anos 80, Pedro Malan -na época um dos expoentes do pensamento econômico brasileiro- mudou-se para os EUA e iniciou uma longa e brilhante carreira no Banco Mundial e em outras entidades internacionais.
O brasileiro simplesmente não resiste a uma permanência tão prolongada no exterior. Foi para os EUA um importante economista brasileiro e os EUA nos devolveram um funcionário internacional irretocável, mas que dá sinais inconfundíveis de que trafega com pouca naturalidade nos meios subdesenvolvidos. Observem as suas atitudes: é um modelo de sobriedade, circunspecto, fleumático, propenso ao "understatement". Parece um alto funcionário do Tesouro inglês lotado na Índia.
Ora, Nelson Rodrigues já advertia que o inglês, tal como o imaginamos, não existe, jamais existiu. A Inglaterra, dizia, é uma paisagem sem ingleses. Só uma vez apareceu lá, miraculosamente, um inglês. Foi quando Malan passou por Londres para renegociar a dívida externa brasileira. E era um sucesso quando ele passava, ele, o único inglês da vida real.
Vamos a um outro exemplo, em escala menor. Um jovem economista brasileiro, recém-chegado de doutorado nos EUA, é premiado no Brasil pela qualidade da sua tese e acha de bom-tom encerrar seu discurso de agradecimento informando que acaba de ser admitido como funcionário de um importante banco americano e que, nessa qualidade, espera contribuir para a crescente integração da economia brasileira à economia global.
Inspiradas palavras finais. Bem típicas da capacidade que tem o brasileiro de internalizar e repetir "shiboleths" internacionais, tipo globalização, abertura econômica etc., como se fossem o "nec plus ultra" da modernidade.
Alguém precisa avisar nossos economistas de que, nesse nível de generalidade, não há um único e modesto pingo de novidade no discurso da moda. Afinal, não é o Brasil, na origem, um resultado da expansão da civilização européia, um subproduto da "globalização" iniciada por Espanha e Portugal no final do século 15?
A nossa luta não pode ser outra senão a de tentar superar a tradição colonial-escravista, arraigada dentro de cada um de nós, e a de buscar uma sociedade justa e uma relação com o mundo que não seja a da integração dependente, subordinada, que não faz justiça ao potencial do Brasil.

PAULO NOGUEIRA BATISTA JR., 40, professor e pesquisador da Fundação Getúlio Vargas, em SP, escreve às quintas-feiras nesta coluna.

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