São Paulo, quinta-feira, 5 de outubro de 1995
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De Rondônia e outros conflitos

JOSÉ GOMES DA SILVA

Como se não bastassem o Sexto Congresso dos Sem-Terra, em Brasília, e a ostentação dos latifundiários inadimplentes (que o presidente chamou de caloteiros), um novo acontecimento dramático -Corumbiara e seus desdobramentos- recoloca nas manchetes a questão da reforma agrária.
Nada mais oportuno, portanto, que lembrar três questões básicas que conformam o problema agrário brasileiro, geralmente desconhecidas do grande público.
A primeira diz respeito ao direito de propriedade das terras agrícolas. Quando o planeta esfriou e o homem apareceu, não havia cercas nem divisas e a terra era de todos. Posteriormente, por diferentes vias, todas inventadas pelo homem, o solo foi sendo apropriado, seja pela força -por meio da lei do mais forte, como agora em Rondônia-, seja por diferentes artifícios legais.
No caso brasileiro, tudo começou com as capitanias hereditárias, depois com as sesmarias e, a partir da Lei de Terras de 1850, com o sistema de compra e venda.
Nos três casos havia sempre, explícita ou não, a obrigatoriedade de cultivar a gleba apropriada, o que raramente acontecia. Essa contrapartida ressurgiu nas últimas duas constituições brasileiras, com o instituto da função social da propriedade rural. Os alemães, sempre mais claros e pragmáticos, resumiam tudo isso com a ``propriedade obriga" da Constituição de Weimar.
Como se vê, a propriedade da terra é regulada por um direito diferente daquele que rege a propriedade de uma fábrica ou de um banco. Se alguém quiser dar-se ao luxo de ter uma fábrica parada ou seu banco fechado, ninguém pode impedi-lo, desde, é claro, que isso não afete direitos de terceiros. Com a terra não. Ela precisa ser cultivada, e mais, ser tratada de acordo com outros requisitos que a lei estabelece.
A segunda questão, decorrente da anterior, é a diferença ética, jurídica e pragmática entre ``invadir" e ``ocupar".
Juristas e professores ilustres como Regis de Oliveira, Fábio Comparato e Luiz Edson Fachin ensinam que ``invadir" significa um ato de força para tomar alguma coisa de alguém, enquanto ``ocupar" diz respeito, simplesmente, a preencher um vazio -no caso, terras que não cumprem sua função social. Doutrinariamente, a ocupação ganha ainda maior aceitação quando a população que a realiza está em estado de desespero, situação em que um direito natural maior -o direito à vida- se sobrepõe a um direito terreno, como o direito de propriedade.
Finalmente, vem a questão da indenização para as terras desapropriadas que não cumprem sua função social. A legislação trata do assunto, mas não é aplicada no seu mérito, em boa parte devido à falta de formação em direito agrário -um ramo do direito que foi criado no Brasil apenas em 1964, pela emenda constitucional nº 10, de 10 de novembro, ainda pouco ensinado e praticado entre nós.
Ensinam os juristas que ``indenizar" significa "tornar indene, isto é, evitar prejuízo ao desapropriado. Em outras palavras, este deve receber exatamente aquilo que despendeu para adquirir ou valorizar o bem desapropriado.
Não se trata, pois, do valor de mercado, como foi sugerido pelo Incra ao propor a absurda idéia (que inviabilizaria a reforma no nascedouro) de comprar terras mediante licitação. Tornar indene, numa ilustração dramática, significa, portanto, no caso do grileiro, por exemplo, pagar o valor da cerca que ele mudou ou a caixa de fósforo utilizada para queimar cartórios...
Essas questões elementares precisam ser entendidas pelo grande público, já que um governo de intelectuais como o atual está cansado de estudá-las. Talvez mediante a pressão popular o Executivo evite as novas chacinas que o governador de Rondônia anunciou, um pouco tardiamente.

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