São Paulo, sábado, 7 de outubro de 1995
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Juizados especiais pedem mudança de mentalidade

WALTER CENEVIVA
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Em conferência recente, no último Congresso de Direito Processual Civil, a desembargadora Fátima Nancy Andrighi, do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, contou uma história passada na China do século 7, no curso das dinastias manchus.
Narrou ela que o imperador Hang Hsi expediu decreto ordenando ``que todos aqueles que se dirigirem aos tribunais sejam tratados sem nenhuma piedade, sem nenhuma consideração, de tal forma que se esgotem tanto da idéia do direito quanto se apavorem com a perspectiva de comparecerem perante um magistrado". Hang Hsi nem disfarçou seu objetivo: consistiu em evitar ``que os processos se multipliquem assombrosamente". Temia que seus súditos concebessem ``a falsa idéia de que teriam à sua disposição uma justiça acessível e ágil; o que ocorreria se pensassem que os juízes são sérios e competentes". Para ele, uma tal crença seria um desastre, tanto que ponderava: nesse caso ``os litígios surgirão em número infinito e a metade da população será insuficiente para julgar os litígios da outra metade".
Conta a história que o decreto imperial foi cumprido. Um intérprete moderno (René David) alinha seis motivos para o cumprimento, alguns dos quais são providos de atualidade e modernidade, especialmente o primeiro: ``a má-fé da organização da Justiça aceita alegremente pelos poderes públicos e quiçá por eles estimulada". Os trabalhadores do direito têm ouvido muitas queixas das autoridades encasteladas nos poderes públicos, mas pouca ação efetiva no sentido de resolver os problemas do Judiciário.
Outro motivo, do qual já tratei até em teses de congressos profissionais, é enunciado como ``o distanciamento em que se colocava o juiz relativamente ao jurisdicionado". Parece que ao tempo de Hang Hsi as coisas da justiça andavam muito mal, tanto que René David recorda mais duas razões palpáveis para o sucesso da medida contra novos processos: esses magistrados eram, além de pedantes, venais, corrompidos. Mas não é só. Submetiam os jurisdicionados a múltiplas humilhações e dissabores. Atrasavam voluntariamente a marcha do processo, do qual se sustentavam, o que causava um último e terrível foco de angústias. O êxito era extremamente duvidoso em qualquer ação.
Salto mais de treze séculos para chegar aos tempos de hoje e lembrar que está em vigor a nova lei dos juizados especiais, baseada no primeiro inciso do art. 98 da Constituição Federal, para finalidade oposta à de Hang Hsi.
Depois de 88 assumi uma posição doutrinária da qual continuo convencido: não há na Constituição juizados de pequenas causas e juizados especiais. Há só uma espécie, apesar de o artigo 24 reconhecer competência da União e dos Estados e do Distrito Federal para a ``criação, funcionamento e processo do juizado de pequenas causas". Não insistirei nessa discussão porque saiu a Lei dos Juizados Especiais e, portanto, só resta aguardar o que vai suceder.
Os juizados especiais não servirão para nada se os juízes se esquecerem de Hang Hsi. Nenhuma justiça funciona se a malícia das autoridades continuar negando condições para seu funcionamento. Já nem digo de juízes corruptos, que, felizmente, são a exceção, exceção menos frequente, aliás, que os pedantes, atacados de ``juizite", com inflamação descontrolada do ego, os preguiçosos, os formalistas. Nos juizados especiais estes não servirão para coisa alguma. Se eles predominarem, o dissabor da demora, o incômodo dos comparecimentos aos tribunais, muitos e inúteis, perturbarão o êxito dos juizados especiais, assustando o povo com o risco de entrar em juízo.

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