São Paulo, sábado, 7 de outubro de 1995
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Sherlock de Jô fala português de Macau

ANTONIO CALLADO
COLUNISTA DA FOLHA

Diante das 349 páginas de ``O Xangô de Baker Street" (Companhia das Letras), a gente se pergunta, não sem um suspiro de inveja, como é que o tempo de Jô Soares dá para tudo o que ele faz. Depois nos lembramos de que o tempo de Luís Fernando Veríssimo, o outro grande humorista da geração atual, também parece inesgotável.
Ainda bem. Ir dormir depois do Jô Onze e Meia e de manhã ler o Veríssimo no ``Jornal do Brasil" são regalias que tornam o país bem mais habitável.
``O Xangô de Baker Street" é um produto literário de difícil classificação. O autor o chama de romance, e romance é categoria tão ampla que não há por que abrir polêmica com ele. Mas o prazer maior que Jô deu a este leitor foi o da lírica evocação de um Rio de Janeiro de mais de um século atrás, onde gente como a visitante Sarah Bernhardt, como a nossa Chiquinha Gonzaga e nosso Olavo Bilac aparecem com grande naturalidade, e de ler um livro onde o visitante Sherlock Holmes é preso por conduta imoral em pleno Passeio Público, como o Hugh Grant outro dia no Sunset Boulervard. Aliás, o que Sherlock Holmes descobre aqui é o Rio. Descobre, virgem que ainda é, as mulheres e a maconha, ele que só era dado à cocaína, como o doutor Sigmund Freud.
``O Xangô de Baker Street" é na realidade o show de um Jô a quem dessem por uma noite o condão de ressuscitar um Rio governado por Pedro 2º, que, além da mulher Teresa Cristina, tinha uma amante cujo precioso violino Stradivarius é roubado por uma espécie de "Jack, o Estripador" local. Esse maníaco acaba dando cabo da própria dona do Stradivarius e embarca para a Europa a bordo do navio que também leva Holmes. O Rio, em suma, na história gloriosa de Holmes, é de fazer Conan Doyle sair do meio dos mortos para interpelar o Jô. O Sherlock original de Doyle não perde uma e só morre em luta corporal com o próprio doutor Moriarty, espírito do Mal. Como é que no Rio vive tão distraído?
Não sei como Jô acalmaria Conan Doyle no seu programa. Provavelmente diria ao autor que, para se proteger do Mal, o Rio desde 1931 tem o próprio Cristo Redentor vigiando a cidade do alto do Corcovado, que era um morro vazio quando Sherlock cá esteve. Com seu herói brindado em comparação com o próprio Cristo, Doyle sem dúvida se aplacaria. E viria passar o Carnaval no Rio, a convite do "Jô Onze e Meia".

Outro livro
Ao receber o ``Xangô" recebi também, encaminhado pelo Departamento Nacional do Livro, pela Fundação Biblioteca Nacional e a Xerox do Brasil, o livro de um poema intitulado ``Os Lusíadas", enviado pelo autor Luís de Camões. Como o exemplar traz meu nome impresso na página de rosto não há dúvida de que o autor realmente fazia questão de me enviar seu poema.
Confesso que achei excelente a idéia de celebrar a 7ª Bienal do Livro com uma impressão fac-similar da primeira edição dos ``Lusíadas", a de 1572, e, sobretudo, a de me mandarem este pequeno volume. Quase me sentei para escrever uma carta ao autor, agradecendo a remessa e torcendo com ele para que se transformasse em realidade uma profecia que ele fez no canto sexto: ``Via estar todo o céu determinado/ de fazer de Lisboa nova Roma".
Haverá, entre as histórias dos descobrimentos, alguma mais interessante, mas bonita do que a do Brasil, documentada por algum repórter mais poético do que Pero Vaz de Caminha? Não, não há. Mas desde aí começa uma história de mal-entendidos entre o Brasil e Portugal.
Podíamos até reclamar, do autor dos ``Lusíadas", que mal tenha mencionado no seu canto décimo o nome da terra, Brasil, só porque o Brasil despertava a cobiça dos franceses. Mas deixemos em paz o poeta, que se ocupava do caminho das Índias e não de um vago mundo novo. Ele sofreu seu pleno quinhão de aborrecimentos amorosos, financeiros e finalmente políticos: viu Portugal, o grande sonho da Roma portuguesa, ruir com a derrota de Dom Sebastião na África.
Mas veja-se o primeiro historiador brasileiro, frei Vicente do Salvador, como logo na abertura de sua ``História do Brasil" ataca os portugueses por terem trocado o nome inicial da terra, Santa Cruz, um nome pio e devoto, ``por causa de um pau assim chamado com que tingem panos". Frei Vicente, rabugento como qualquer jornalista atual da oposição, continuou feroz, dizendo que os portugueses completaram o sacrilégio denominando a nova terra ``Estado do Brasil". O resultado é que o Brasil ficou tão pouco estável ``que com não haver hoje cem anos, quando isto escrevo, que se começam a povoar, já se hão despovoado alguns lugares e, sendo a terra tão grande e fértil como ao diante veremos, nem por isso vai em aumento, antes em diminuição".
Mas não estava no meu programa abordar esta velha birra luso-brasileira que cria com frequência problemas insólitos até nos aeroportos de Lisboa e do Rio. Nada mais diferente da alegre e despreocupada atitude dos índios ao receberem as naus de Cabral, do que as barreiras atuais da imigração e do controle dos passaportes. Será que as comemorações que se aproximam, dos 500 anos do descobrimento, vão servir para uma reaproximação de afeto e estima?
Até agora é como se o Brasil -que mandou tanto ouro para Portugal nos tempos da colônia- cobrasse de Portugal não se haver transformado pelo menos num dos pequenos países europeus de grande expressão. E como se Portugal -que conseguiu manter o Brasil um país tão grande e tão promissor- cobrasse de nós o fato de continuarmos apenas promissor e grande.
Portugal formou recentemente uma Comissão Nacional para as comemorações dos descobrimentos portugueses e ela já iniciou trabalhos que irão até o ano 2000. Com rude franqueza, Francisco Faria Paulino, comissário-geral dessa Comissão, disse à Folha: ``Tirando as telenovelas e o futebol, não sabemos nada sobre o Brasil. Há preconceitos a destruir e idéias feitas que têm quer ser refeitas".
Portugal, de governo novo desde domingo último, continua buscando lugar de destaque na Europa. O Brasil tenta se transformar numa espécie de tigre asiático sul-americano. Mas bem farão os dois se relerem com certa frequência aquele poema de 1572 e cultuarem até o mau humor de frei Vicente do Salvador. Reclamamos de nós mesmos por não produzirmos os frutos desejados, mas esquecemos de cuidar das raízes. O Sherlock de Jô chegou ao Rio falando português, de tanto que tinha ouvido a língua em curso no Oriente. Hoje, provavelmente, chegaria aqui sem ter ouvido português lá fora. E aqui dentro também não ouviria muito não.

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