São Paulo, sábado, 7 de outubro de 1995
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Fim de poço

CARLOS HEITOR CONY

RIO DE JANEIRO - Leitor aqui do Rio localizou meu telefone, apresentou-se como amigo de um amigo e me disse muitas e más a propósito de crônica minha, publicada esta semana. Declarou-se chocado pelo fato de eu ter admitido que não gostava de um sujeito para o qual ``rogo todas as calamidades possíveis".
Não contente por ter manifestado tão reprovável falta de caridade cristã e solidariedade humana, eu afirmara que o dito sujeito ameaçava chegar vivo até o final do ano -o que seria, sob meu ponto de vista, uma calamidade suplementar.
Apanhado no contrapé, sem poder dizer que eu não estava ou que eu não era eu, mas o contínuo, fiquei ouvindo a reclamação. Enquanto ele falava, pensei em responder o que me competia: gosto ou desgosto de quem quero, o problema é meu, não devo satisfações a ninguém, coisas assim.
Mas houve um momento em que o cara se cansou e pareceu disposto a ouvir. Iniciei então o perfil do meu desafeto, aos poucos, com detalhes que iam da infância mais remota até a véspera. De início, o sujeito concordava que eu lidara com um crápula, mesmo assim, como cidadão e filho de Deus, ele merecia respeito e a citada caridade cristã.
Fui carregando nas tintas e percebi o momento em que o reclamante começou a balançar. E tanto balançou que eu dei uma bobeada, acrescentando um detalhe escabroso que me comprometeu. Quis parar no meio, mas o mal estava feito: o sujeito me interrompeu com um ``pera aí". E depois de pensar um pouco: ``Eu acho que conheço esse sujeito! Nosso amigo comum fala muito nele!".
Agarrei-me àquela tábua, ``sim, sim, o nosso amigo também conhece esse indivíduo, é só perguntar, nem precisa dizer o nome, o senhor vai ver que tenho motivos para rogar todas as pragas contra ele".
No final da noite, quando nem mais lembrava da reclamação, o tal amigo comum ligou-me, reprovando a minha atitude. Achou que eu fizera revelações comprometedoras. Como sempre, eu exagerara. E perguntou-me: ``É verdade que também passou a acreditar em horóscopo? Realmente, você chegou ao fim do poço!".

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