São Paulo, domingo, 8 de outubro de 1995
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NA PONTA DA LÍNGUA

MARCELO LEITE

Uma das coisas boas desta função são as curiosidades. Esta semana aprendi, por exemplo, que existe uma lei regulamentando o uso da palavra ``couro".
Daqui para a frente tome muito cuidado quando usar em vão expressões como ``dar no couro" e ``arrancar o couro", ou mesmo ``couro cabeludo". A Lei 4.888, de 1965, pode alcançá-lo.
Tomei conhecimento do curtido diploma legal em carta da Associação Brasileira dos Químicos e Técnicos da Indústria do Couro, ``filiada à IULTCS". A educada porém firme missiva lembrava ao jornal que uma reportagem sobre ``couro ecológico" infringia a legislação.
A carta foi devidamente encaminhada para a Redação, para conhecimento, pois a associação não pedia publicação.
Trechos da lei: ``Art. 1º - Fica proibido pôr à vista ou vender sob o nome de `couro' produtos que não sejam obtidos exclusivamente de pele animal. (...) Art. 3º - Fica também proibido o emprego da palavra `couro' mesmo modificada com prefixos e sufixos, para denominar produtos não enquadrados no art. 1º".
Ou seja, também a expressão ``couro artificial" estaria proibida. O produtor/vendedor desse produto abominável teria portanto dificuldade em ser honesto com o consumidor. Talvez a saída seja escrever: ``produto obtido exclusiva porém artificialmente de pele animal"...

Um outro leitor escreveu para pôr em dúvida a expressão ``cheque pré-datado". Segundo sua argumentação cartesiana, o cheque deveria chamar-se ``pós-datado", pois a data que se escreve junto ao tradicional ``bom para..." é posterior à da emissão.
Nunca tinha pensado nisso, e acredito que a maioria das pessoas também não. Só que a coisa pegou. Esse dizer entrou para a língua, ninguém mais tira.
Minha explicação é que houve um transbordamento da noção de antecipação. Ela está presente apenas no ato negocial de emitir um título antes da data em que poderá ser resgatado. Mas contaminou o ato linguístico de escrever uma data no papel-promessa.
Seria uma espécie de ato falho coletivo, como tantos na cultura dos brasileiros. É como se a consciência pesada do gastador por antecipação sussurrasse: ``Olha, eu prometo pagar daqui a 20 dias. Pode estar certo. Tão certo quanto se eu tivesse pago 20 dias atrás".
E todo mundo acredita, principalmente quem fala. Tem gente que até vive de comprar e vender essas ilusões, atividade que floresce sob o misterioso nome de ``factoring". Quando tudo vem por terra, saca-se do palavrão: inadimplência.

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