São Paulo, domingo, 8 de outubro de 1995
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Mulher dirige os seis sobreviventes de Goiás

MARIO CESAR CARVALHO
DO ENVIADO ESPECIAL

A saga dos avá é uma conta de subtração. Estima-se que havia 2.500 deles há dois séculos. Em 1850, seriam 1.100. Cem anos depois, 200. Em 1970, havia cem.
O grupo de Goiás sobreviveu à última chacina de avá, no fim dos anos 60 (leia texto ao lado). Quando foram contatados em 1983, eram três mulheres (Matcha, cerca de 55 anos hoje, Nakwatcha, perto de 50, e Tuia, 22 a 25) e um homem (Iawi, na faixa dos 30).
Todos os papéis da tradição indígena já estavam subvertidos. Matcha é a chefe do grupo, função dos homens entre os índios. Nakwatcha faz as vezes do pajé, cuida do contato com o sobrenatural -outro papel masculino.
Foi a sucessão de chacinas que levou os avá a abandonar a tradição. Na fuga, inverteram a história do homem. Habitavam aldeias e tornaram-se nômades -vivem da coleta de plantas e da caça.
Foram as chacinas que forjaram nos avá o trauma com crianças. É um choque ouvir Matcha explicar por que as mulheres abortavam os fetos, dançando a noite inteira, durante os 25 anos de fuga no mato:
``Criança chora, fazendeiro vem e mata índio", diz.
``Criança atrasa fuga".
As duas crianças só nasceram após o contato. Iawi, o único homem adulto, havia sido preservado das caçadas e das tarefas perigosas na adolescência. Era o eleito para continuar a etnia com Tuia.
Fuga é a palavra-chave na saga. Havia mais de 200 anos que os avá recusavam contato com brancos. Desde 1750, quando bandeiras já haviam descoberto ouro em Goiás, têm-se notícias dos avá -notícias de confronto, massacre e fuga.
Por causa da recusa ao contato, passaram a ser tratados como ``ferozes", ``cruéis", ``bárbaros". ``O canoeiro é o mais valente, sagaz e previdente. Quando bate, a destruição é certa", escreveu Couto de Magalhães no século passado no livro ``Viagem ao Araguaia".
A afronta foi respondida a bala. Foram cem anos de guerra, entre 1780 e 1880, segundo a historiadora Dulce Pedroso, autora de um livro sobre os avá nos séculos 18 e 19, chamado ``O Povo Invisível".
A invisibilidade, derivada da capacidade de se ocultar nas matas, mais a fama de feroz viraram lenda nos sertões goianos.
Desde o século passado até os anos 70 deste século, os avá eram conhecidos como ``caras pretas". Imaginava-se que fossem o resultado da relação entre índios e negros de quilombos. Não são. A lenda da ferocidade resistiu até 1973, quando a Funai (Fundação Nacional do Índio) encontrou os avá que vivem na Ilha do Bananal.
Foram pegos a laço e colocados ao lado de seus maiores inimigos históricos, os javaé. ``A cultura avá foi massacrada na Ilha do Bananal", diz Eliana Granado.
Os avá de Goiás tiveram melhor sorte. Os quatro adultos entregaram-se nus a um posseiro em 1983 -esses dez anos de diferença são uma barreira intransponível para a relação entre os dois grupos.
Vivem numa reserva só de avá, de 38 mil hectares -equivalente a um quarto da área da cidade de São Paulo. Caçam e recebem cestas básicas de Furnas, que está construindo a usina hidrelétrica de Serra da Mesa na região.
Em um ano, o trecho do rio Tocantins que passa na reserva vai secar por causa da hidrelétrica, e os avá, chamados de canoeiros pela destreza com a canoa, vão viver à beira de um ribeirão.
A hidrelétrica tumultuou a vida dos índios -eles não conseguem entender como o rio vai secar-, mas é outra possibilidade de sobrevivência da etnia. A represa vai alagar 10% da reserva, e Funai e Furnas buscam no mato quatro grupos de avá não-contatados. Seriam entre 20 e 30 índios.
As buscas duram dois anos, sem sucesso. ``O contato é única possibilidade concreta de fazer a nação avá ressurgir", diz Eliana Granado, que hoje trabalha para Furnas.
Os antropólogos se apóiam numa aritmética perversa para acreditar na sobrevivência dos avá. Cerca de mil etnias foram extintas desde o Descobrimento, mas duas reverteram o processo. Os tapirapé eram 38 nos anos 40 e hoje são cerca de 500. Os juruna chegaram a 15 há 50 anos e somam 130.
A antropóloga aventa a hipótese de casar as crianças avá com tapirapé -ambos são tupi e falam línguas parecidas. Walter Sanches, 50, chefe do posto avá em Minaçu, é mais pessimista. ``Não há o que fazer, é uma nação extinta. Sobraram seis náufragos".
(MCC)

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