São Paulo, domingo, 8 de outubro de 1995
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O predador excludente

ROBERTO CAMPOS

"O mais delicioso dos privilégios é gastar o dinheiro dos outros."
(John Randolph)

Está na moda falar-se nos "excluídos". Há os "sem-terra e os "sem-teto". A coisa já foi mais grave. Até o Plano Real, havia também os "sem-moeda, porque a hiperinflação derretia como manteiga a moeda dos que não tinham conta bancária indexada.
Se há "excluídos", há um "excludente". Quem será? No caso da moeda, certamente o governo, que inflacionava a economia gastando mais do que recebia.
Um dos mitos a explodir, cultivado pelos dinossauros, é que o Estado tem uma "função social", buscando altruisticamente o atendimento das camadas pobres e a universalização dos serviços. "Quod erat demonstrandum"...
O atual problema dos "sem-terra" agravou-se porque o Incra ignorou o Estatuto da Terra de 1964. Este previa como instrumento principal de reestruturação agrária a "tributação" progressiva sobre o latifúndio improdutivo, que geraria recursos para a "colonização" de novas áreas, ficando a "desapropriação" como remédio excepcional para áreas de conflito. Nem a tributação nem a colonização foram adequadamente ativadas, restando apenas o instrumento da desapropriação, politicamente conflituoso e ameaçador para vizinhos produtivos.
O problema dos "sem-terra" se agravou no tempo por inércia ou inépcia da burocracia governamental. O problema dos "sem-teto" não é muito diferente. Entre 1964 e 66, montou-se um esquema de financiamento por meio do FGTS e das cadernetas de poupança e criou-se o BNH, que financiaria e estimularia os agentes privados.
Esse órgão se tornou viciado e inchado, mas, em vez de purificado, foi extinto e suas atribuições conferidas à Caixa Econômica Federal. Esta investiu sem retorno em projetos de Estados e municípios, caloteiros tradicionais, pouco restando para agentes privados. Aumentou o número dos "excluídos", isto é, dos "sem-teto".
Particularmente dramático é o caso do FGTS. A prestação de contas do FGTS encaminhada ao Conselho Curador revela que, no exercício de 1994, de cada US$ 1 gasto não mais que US$ 0,52 foram para "saneamento, habitação popular e infra-estrutura", finalidades básicas do FGTS, sendo o restante absorvido por "despesas administrativas" e "tarifas bancárias" etc.!
Está sendo votado no Congresso um projeto do deputado Cunha Bueno que visa proteger os trabalhadores contra os desperdícios do FGTS, facultando-lhes aplicar seus depósitos vinculados na compra de ações de estatais a serem privatizadas. A emenda do deputado monarquista tem uma peculiaridade: foi co-patrocinada por mim, um liberal clássico, e pelo deputado petista Paulo Paim, irmanados no propósito de assegurar que os trabalhadores não sejam "excluídos" do processo de privatização.
Os rendimentos das ações substituiriam os magros juros de 3% do FGTS. O Tesouro nada desembolsaria, limitando-se a entregar suas ações em cancelamento de sua dívida trabalhista. Aceitei com alegria o apoio de um líder sindical, conquanto me pareça aético seu raciocínio: "Se as privatizações são, como dizem, uma mamata, é justo que nós, trabalhadores, dela participemos"...
A forma elegante de enfocar a questão é que se trata de um gesto na direção do capitalismo do povo. Foi por meio das privatizações que lady Thatcher fez com que o número de acionistas superasse o dos sindicalistas na Inglaterra.
A capacidade do governo de criar "excluídos" é infinita. A política nacionalista de informática, ao encarecer absurdamente os computadores, criou uma geração de jovens "sem-computador", "excluídos" da sociedade do conhecimento.
Uma das obras-primas de "exclusão" foi o monopólio de telecomunicações da Carta de 1988. As justificativas do monopólio eram "estratégicas" e "sociais". A ineficiência das telecomunicações tornou-se um perigo "estratégico". E a função "social" da Telessauro, uma piada de mau gosto!
Hoje, 81% dos telefones servem às classes de renda A e B (que representam 17% da população), 17% à classe C e 2% à classe D, nada havendo para a classe E. Sendo o acesso ao telefone o mais caro do mundo (US$ 1.200) e a tarifa local uma das mais baixas, a Telessauro subvenciona maciçamente a tagarelice dos ricos e remediados.
A privatização é urgentemente necessária inclusive por motivos sociais. Tanto no México quanto na Argentina melhorou enormemente, após a privatização, a cobertura de áreas interioranas, porque os contratos de concessão o exigiram e porque as empresas são passíveis de multa e cancelamento da concessão.
Além de omissa em suas funções sociais, a Telessauro é conhecida "estelionatária" e "usurpadora". "Estelionatária" por receber dinheiro dos subscritores, descumprindo irresponsavelmente os prazos de entrega. Daí resultam prejuízos de negócios, inviabilização de instalações e um robusto mercado negro de aparelhos.
"Usurpadora" porque a Embratel, e depois a Telebrás, se apropriaram do Fundo Nacional de Telecomunicações, constituído por sobretarifas pagas pelos usuários, lançando-as à conta de capital e emitindo ações dessas empresas em favor da União Federal.
É dinheiro dos usuários ilegitimamente transformado em capital do Tesouro! Como, em virtude de distorções tarifárias, os lucros são concentrados na Embratel, ficam também prejudicados os subscritores de ações das teles regionais.
O programa de investimentos da Telessauro para 1996 é um misto de "desperdício" e "elitismo". "Desperdício" porque as estatais insistem em se endividar para ocupar espaço na telefonia celular, que poderia atrair amplos capitais privados.
"Elitismo" porque se privilegiam os celulares em detrimento da rede básica pública e da telefonia rural. Sem falar no desrespeito às listas de espera dos telefones convencionais! No orçamento da Telesp, 53,3% vão para a telefonia celular, 40,5% para a rede básica, zero para a telefonia rural. Na Telepar, as proporções respectivas são 58%, 36% e 0,66%.
Leio na revista "Business Week" (25/09/95) que a Telebahia teria contratado com a Ericsson equipamento para TV a cabo no valor de US$ 32 milhões, para conectar 250 mil residências em Salvador. Instalar TV a cabo não é função social e para isso existem capitais privados.
Como o das outras teles, o orçamento da Telebahia é desbalanceado, com 52% para celulares, 42% para rede básica e apenas 1,3% para telefonia rural. O número de terminais instalados (5,1 por cem habitantes) é menos da metade da média nacional, já vergonhosamente baixa. Há 0,18 telefones públicos por cem habitantes, seis vezes menos que a média brasileira (1,16) e 23 vezes menos que a média mundial (4,11%).
À luz dessas estripulias orçamentárias, duas conclusões se impõem: 1) ou o governo mente quando diz querer poupar recursos públicos acelerando as privatizações ou 2) os gestores estatais são indisciplinados, querendo expandir seus feudos corporativos, caso em que deveriam ser sumariamente demitidos.
O governo benfeitor e "includente" é uma ficção. Trata-se de um predador "excludente".

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