São Paulo, domingo, 8 de outubro de 1995
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O filme perdido de Hirszman

CARLOS AUGUSTO CALIL
ESPECIAL PARA A FOLHA

Em 1976, logo após realizar três documentários que intitulou ``Cantos do Trabalho no Campo", em que dava continuidade ao projeto de documentação das manifestações populares concebido por Mário de Andrade e levado ao cinema por Humberto Mauro, o diretor Leon Hirszman (1937-87) foi convidado a produzir a parte brasileira de uma série -``Inchiesta Sulla Cultura Latino-Americana"- que a RAI (Rádio Televisão Italiana) desenvolvia sob a coordenação de Mário Sábato, filho do escritor e ativista político argentino Ernesto Sábato. Leon, numa entrevista de 1982, assim se refere ao episódio:
``Chamei Zuenir Ventura, que preparou um roteiro de caráter jornalístico para apresentar um panorama da cultura sob a ótica dominante-dominado. Não era propriamente um roteiro, mas uma indicação para a pesquisa. Trabalhei nesse filme em 76 e em 77 fui a Roma onde fiquei seis meses editando. O resultado são dois programas de uma hora e cinco minutos. Chama-se `Que País É Este?', em cima da pergunta formulada pouco antes por Francelino Pereira. Nunca foi exibido, nem mesmo na Itália. A censura partiu dos próprios diretores da emissora, logo depois de uma reformulação que dividiu a RAI em dois canais. Um ficou sendo uma espécie de TV Globo, para consumo sofisticado-popular. E o outro, um canal cultural. Por azar, o programa ficou com o primeiro canal. Eles queriam um documentário sobre os mitos, Pelé, algo sensacional. Nada que fosse crítico".
Os filmes, que o próprio Leon jamais viu prontos, foram estruturados a partir de longas análises de cinco ilustres professores: Fernando Novais, Sérgio Buarque de Holanda, Alfredo Bosi, Maria da Conceição Tavares e Fernando Henrique Cardoso (leia abaixo alguns dos depoimentos). Leon se posiciona nesse filme como um aluno aplicado que formula perguntas aos mestres, enquanto produz o material que ilustra as teses deles.
A Fernando Novais coube historiar os movimentos inconfidentes, a escravidão dos índios e negros, a estrutura da dominação política e econômica do sistema colonial, a peculiar posição da casa dos Bragança, que, diante dos liberais de Lisboa, decide dividir a coroa para permanecer à testa dos dois países.
Alfredo Bosi articula história e cultura a partir da penetração do colonizador. Sérgio Buarque fala do genocídio dos índios, que não resistiam ao invasor pelas armas nem às doenças que lhes eram transmitidas, e do caráter puramente simbólico da Abolição. Fernando Henrique discorre sobre o pacto político que sustenta a implantação da República, o papel privilegiado dos militares que se obstinam em constituir uma nação, a sua luta antioligárquica que culmina na revolução de 30 e a trajetória política do país até o golpe de 64. Deriva para a análise da conjuntura de 1976, em que enxerga um impasse que afasta o povo do regime militar. O povo buscando na religião, no carnaval e no esporte as expressões mais autênticas de suas reivindicações.
Maria da Conceição Tavares analisa o modelo de desenvolvimento, que transforma o país num campo de disputa dos capitais internacionais. ``Que País É Este?" foi concebido para provocar um debate na universidade brasileira, depois de cumprir sua função de retratar o país em perspectiva para os italianos. Lançava mão de breves depoimentos de Alceu de Amoroso Lima, Prudente de Moraes Neto, Heleno Fragoso, Petrônio Portela, Ulysses Guimarães, Magalhães Pinto e outros.
Como imagem, utilizava trechos de ``O Descobrimento do Brasil", de Humberto Mauro, de ``Vidas Secas", de Nelson Pereira dos Santos, de ``Deus e o Diabo", de Glauber Rocha, de documentários que ele mesmo havia filmado anteriormente. Mas Leon produziu também material original, a partir das idéias lançadas pelos seus professores, sobre umbanda, o movimento dos pentecostais, etc.
Tudo indica que se trata de um documentário ambicioso, cujo resgate se justificaria na pior das hipóteses como um painel em movimento do pensamento predominante na elite universitária brasileira em meados do decênio de 70. Na hipótese mais otimista, o filme logra alcançar uma síntese capaz de satisfazer a indagação formulada pelo líder da Arena, em nome de uma perplexa classe política a serviço da modernização autoritária do país, conduzida -não sem contradições, avanços ou recuos- pelos militares.
Uma cópia desse filme vem sendo buscada há já alguns anos, inicialmente pela Cinemateca Brasileira, no presente momento pela equipe que organizou uma retrospectiva da obra de Leon Hirszman, patrocinada pelo Centro Cultural do Banco do Brasil, em setembro. Há indícios auspiciosos, colhidos pela embaixada brasileira em Roma, de que a RAI teria conservado os programas que em outro tempo rejeitara.
Entre os papéis que constituem a documentação pessoal de Leon Hirszman, depositada pela família no arquivo Edgard Leuenroth, da Universidade de Campinas, encontra-se uma tradução italiana dos depoimentos que articulam o filme, ``uma colagem estruturada", segundo seu autor. Para nos aproximar dos temas ali tratados, transcrevemos fragmentos desses testemunhos, numa arriscada operação, que devolve a fala dos professores à sua língua original.
Fernando Novais
``No Brasil predominou largamente o trabalho escravo e, em particular, o dos escravos africanos. Houve mesmo uma preferência pelos escravos africanos na história colonial moderna. Diz-se, por exemplo, que o escravo africano foi utilizado porque os índios não se adaptavam ao trabalho no campo. Examinemos o conceito de `adaptação ao trabalho' do índio ou do negro nos seus justos termos; o que quer dizer: `os índios não se adaptavam ao trabalho escravo'? Fica subentendida, mesmo inconscientemente, a idéia de que o negro, sim, se adaptava ao trabalho escravo.
Devemos inicialmente nos convencer de que não existe adaptabilidade ao trabalho escravo: nem o negro nem o índio jamais se adaptaram ao trabalho escravo. Podemos assim refutar sem hesitação esta explicação de adaptabilidade, mas, se ainda faltasse argumento, temos o dado concreto de que os índios trabalhavam no campo. Os estudos relativos ao período inicial da introdução da cana-de-açúcar mostram que a plantação foi realizada com trabalho indígena. Apenas por volta da metade do século 16 a importação de escravos africanos atinge um nível significativo do ponto de vista econômico. Além disso, na fase mais difícil, entre 1520 e 1550, foi utilizado o trabalho dos índios e não apareceu o problema da adaptabilidade.
No século 17, em plena concorrência colonial, que se manifestava sobretudo com relação ao tráfico africano, o fornecimento de escravos na América portuguesa se tornou precário. Então os colonos recorreram ao trabalho dos índios. É a época de ouro das Bandeiras, que partem de São Paulo e vão à procura dos índios naquelas regiões onde eles já estavam mais domesticados, isto é, nas missões dos jesuítas. Os bandeirantes levavam-nos embora e os vendiam aos colonos do litoral. Nessa época não se colocava qualquer problema de adaptabilidade.
O fornecimento de mão-de-obra, sob um regime escravista, criava um circuito comercial. Se este circuito ficasse circunscrito à colônia, isto é, se tivesse início e fim na colônia, deixava a renda desta atividade econômica na própria colônia. Ao mesmo tempo, o tráfico dos escravos era um circuito comercial que punha em contato a colônia com a metrópole. Em outros termos, o fornecimento de mão-de-obra indígena favorecia a acumulação, mas a favorecia na colônia, enquanto o tráfico africano a favorecia na metrópole; já que o sistema existia para acumular, a metrópole preferia o escravo africano. Chegamos assim ao paradoxo em que o tráfico explica a escravidão e não o contrário."
Alfredo Bosi
``No fim do século passado, importamos a segunda ideologia colonialista, aquela que vem da França, da Inglaterra, da Alemanha, no momento em que estes países estão em plena expansão colonial, seja na África, na Ásia, ou mesmo na América.
Começa a haver uma ciência colonialista, e os nossos intelectuais a assimilam completamente. Do ponto de vista da ciência colonial existem realmente raças inferiores, raças completamente tomadas pelas paixões, pela mais cega emotividade, raças mais afetivas. Os intelectuais não compartilham esta afetividade, que julgam patológica; para eles, são raças que não conseguem dominar os seus instintos, e foram incapazes de construir uma civilização. Disto nasce a idéia que o trópico não é favorável à civilização.
Tenho a impressão de que esta seja um pouco a ideologia dos nossos bisavôs e dos nossos avôs, uma visão muito pessimista das possibilidades do povo brasileiro. Neste ponto, o mais negativo, podemos situar a experiência fundamental de Euclides da Cunha, fundamental porque nela existe a contradição e onde há contradição existe a possibilidade de superá-la.
Euclides, um intelectual formado neste clima realista e positivista, foi enviado como repórter a Canudos e presenciou a luta dos sertanejos que resistiam fortemente ao Estado, no caso a jovem República. Foram enviadas várias expedições contra eles até que foram completamente massacrados. Euclides escreveu esta história e a interpretou em `Os Sertões'. Creio que este seja um momento fundamental para a evolução das duas culturas: no final do século passado, um jovem militar, portador de toda a cultura branca no seu momento colonialista mais intenso, se prepara para verificar as reais condições desta população.
Ocorre um choque de mentalidades; por um lado, se assim podemos dizer, a condenação daquele mundo como atrasado, mas também, no nível da sensibilidade, no nível epidérmico, corpóreo, o mais concreto possível, existe também um choque de simpatia. Euclides percebe a carnificina. Desse modo, cultura e carnificina estão unidas nesta obra. A idéia do crime e da fatalidade está presente como uma contradição nos seguintes termos: se é crime, não é fatalidade e se é fatalidade, não é crime.
A contradição permaneceu como uma espécie de pedra no caminho da classe intelectual brasileira. Quem é realmente essa gente? Foi preciso um massacre para que se começasse a pensar o problema em termos mais sérios."
Fernando Henrique
``O modelo de desenvolvimento é baseado sobre a articulação entre as sociedades estrangeiras, a sociedade local e a burocracia pública. Nesta última, o setor militar tem um papel fundamental. Papel predominante porque, desde 64, desde a queda de João Goulart, é este setor militar que exercita o poder de veto e continua a ter, talvez, a mesma idéia de que é preciso criar uma nação. É uma idéia velha de 70 ou de 100 anos.
Criar uma nação tornou-se ampliar a participação das empresas e sobretudo das empresas estatais. Uma nação na qual o povo é relegado a segundo plano. Esta nação, vista como Estado, vai-se constituindo, está crescendo. A articulação e mesmo a preservação de certos pontos importantes para evitar que as multinacionais neles penetrem está-se cumprindo, até certo ponto. Agora, no que diz respeito ao outro aspecto da nação, que implicaria saber o que fazer da articulação com a base popular, como exprimir a presença destas bases, até que ponto equilibrar as necessidades de crescimento rápido, de acumulação etc. com a necessidade de sobrevivência da população; os indicadores sociais dizem que isto não foi feito.
Não quero entrar nos detalhes, mas evidentemente não houve grande progresso na alimentação, nem na escolarização, nem na mortalidade infantil, em nenhum desses indicadores sensíveis. Eles mostram o que aconteceu no outro aspecto da articulação social necessária. O Estado articulou a economia, articulou estes anéis que permitem alianças entre os grupos das empresas estrangeiras, das empresas nacionais e das empresas estatais, além do setor militar; tudo isto está relativamente articulado, com contradições, com tensões, mas relativamente articulado, mas o Estado não articulou a sociedade, nem criou uma ideologia nacional capaz de cimentar e de mobilizar estas massas, nem instituições políticas capazes de dar expressão à vida desta gente.

Leon nunca teve acesso a uma cópia do seu filme e protestava, sempre que podia, contra esse fato, pois o considerava importantíssimo. Dizia, com a modéstia que o caracterizava, que era o trabalho com o qual mais havia aprendido na vida. Vinte anos depois, e com a nota especial de ter um de seus narradores guindado ao mais alto cargo político da nação, esse filme virou emblema de um tempo em que a elite intelectual forjava um pensamento que a unia em torno de um projeto que devolveria o Brasil, num futuro próximo em que já estivesse reestabelecido como uma nação democrática, ao seu povo.

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