São Paulo, domingo, 8 de outubro de 1995
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A situação pós-liberal

ALAIN TOURAINE
ESPECIAL PARA A FOLHA

Acabo de percorrer quatro países latino-americanos; embora diferentes, todos se deparam com o mesmo problema. O México, a Colômbia, a Bolívia e o Brasil estão expostos, como todos os países do mundo, aos efeitos da abertura e da globalização econômica. Somente alguns poucos ideólogos ainda negam essa evidência e crêem no dirigismo do passado. Com maior ou menor eficiência, porém, todos se adaptam à nova situação mundial, e seu sucesso ou fracasso depende sempre da mesma causa -o funcionamento do sistema político.
No início, tal conclusão não era nada evidente. Podíamos pensar, ao contrário, que o fator determinante do sucesso era o estado da economia. Ora, a Colômbia vai economicamente bem e socialmente mal, ao passo que a Bolívia, cuja situação econômica é a pior do continente, moderniza-se politicamente de maneira notável. Uma outra interpretação afirmava que, num continente marcado por desigualdades sociais extremas, a força da pressão popular seria a única capaz de compensar os efeitos negativos de um liberalismo cuja tendência é aumentar ainda mais as distâncias sociais. Ora, hoje em dia tais movimentos populares são inexistentes ou de alcance restrito, ao contrário de 15 anos atrás, época do grande impulso dos movimentos urbanos e das comunidades eclesiais de base. Esta ausência é explicada pela longa tradição de dependência dos movimentos sociais em relação ao Estado, paralela à dependência análoga dos empresários na maioria desses países, com a exceção do Brasil.
O ponto decisivo, portanto, é o bom ou o mau funcionamento do sistema político. Trata-se, de fato, de combinar uma abertura econômica e uma integração social em boa parte contraditórias. Essa fórmula, todos sabem, representa uma ruptura com a ideologia neoliberal, segundo a qual a abertura, ao fortalecer a racionalidade econômica, produziria efeitos sociais favoráveis. Basta observar a Europa central pós-comunista para ver que essa afirmação é ridícula e brutalmente desmentida pelos fatos.
Não estamos no início da hegemonia liberal; nossa tarefa é construir uma sociedade pós-liberal, já que o liberalismo não é um tipo estável de sociedade, mas um choque, uma transição, uma destruição dos modos não-econômicos de gestão da economia. Uma vez alcançado seu objetivo, geralmente com uma eficácia brutal, é preciso reconstruir a sociedade a partir dos conceitos de justiça e integração, sendo este o principal dever do sistema político, pois se trata de administrar as relações entre interesses potencialmente divergentes.
Os quatro países visitados apresentam as mais diversas conjunturas. À diferença dos outros, a Colômbia vive na violência. E isso não é apenas -como ao tempo da Violencia, após 1948- o efeito de um sistema oligárquico em decomposição, mas resultado da privatização geral da vida pública. As guerrilhas tornaram-se em grande parte indústrias do crime organizado, os bandos que controlam os bairros pobres não têm outro objetivo senão fazer valer seu poder arbitrário, a corrupção alastra-se por toda parte e a cada ano os crimes políticos liquidam o mesmo número de pessoas -mais de 30 mil- que o Sendero Luminoso matou ao longo de dez anos no Peru.
A insegurança que reina nas cidades e sobretudo no campo é responsável pelos êxodos e, aos poucos, reorienta a economia para os mercados externos ou para as grandes massas metropolitanas. A Colômbia, cada vez mais, é uma economia sem sociedade.
A situação do México não é muito diferente. Esse país vive a lenta agonia do partido único, o PRI. Ninguém acredita seriamente que ele possa reerguer-se, e não se vê outro desenlace possível senão o ``destape", a próxima vez, de um candidato do PAN pelo último presidente, filiado ao PRI. O que parece ser quase impossível. No México a violência também se expande, atiçada pela miséria que agravou o colapso econômico do final de 94. Este, por sua vez, tem causas mais políticas que econômicas. Como investir a longo prazo num país vítima de uma tal crise de credibilidade política, onde a maioria da população acredita que o antigo presidente mandou assassinar o candidato à presidência que ele próprio escolhera? A volatilidade dos capitais, sobretudo os nacionais, traduz tal insegurança política.
O contraste destes dois países com a Bolívia é impressionante. Desequilibrada pelo comércio de drogas e pelos ultimatos americanos, esse país pobre e fragmentado tomou a iniciativa de se transformar num Estado de direito, iniciativa esta conduzida conjuntamente pelo presidente Sánchez de Losada e o vice-presidente Hugo Cardenas, índio aimará, formado no movimento khatarista.
A vida política, limitada às três principais cidades do país, estende-se agora ao conjunto dos municípios, fugindo ao controle dos caudilhos e incorporando as instituições administradas pelos índios. Esse programa de participação social trava um combate que se tornou típico na América Latina: defende os mais pobres, os mais excluídos, contra os privilégios políticos e econômicos das classes média e alta das grandes cidades, como também, no caso desse país, contra as regalias dos produtores de cocaína, que se tornam cada vez mais fabricantes de pasta. Esforço admirável, ameaçado pelo crescimento do populismo e sobretudo pela vontade de Banzer de chegar enfim à presidência através das eleições, mas que explica também o poder de recuperação espetacular desse país, desde que foi salvo uma segunda vez por Víctor Paz Estenssoro.
A situação política do Brasil está muito mais próxima da Bolívia que do México, fato que prova a supremacia da vida política sobre a econômica, e não o contrário. Pois a política do Brasil só pode ser definida como pós-liberal, dominada pela consciência de apoio social semelhante à Bolívia. O fim da inflação melhorou consideravelmente a situação das classes mais pobres, embora as medidas tomadas sejam desfavoráveis aos funcionários públicos, aos professores e muitas vezes aos pequenos comerciantes.
O ajuste econômico visa à criação de condições de desenvolvimento estável, mas até agora o meio empresarial paulista, assustado com a queda das reservas -hoje em grande parte já recuperadas-, mantém-se um tanto retraído, em contraste com seu apoio caloroso dado à candidatura de Fernando Henrique Cardoso.
Tal situação, que é também um indício político, explica a atual conjuntura do Brasil, onde o presidente tem um forte respaldo na opinião pública, mas se choca com a reticência, que raramente chega à hostilidade, dos setores cujas idéias têm grande repercussão pública, como os universitários e a imprensa. Isso revela também a relativa fraqueza do sistema político brasileiro.
Formalmente, ele conseguiu lidar muito bem com a crise do impeachment, mas é incapaz de conduzir o debate nacional. O objetivo mais importante no momento é nacionalizar a política, fazer com que um conjunto heterogêneo e mutável de grupos de interesse torne-se um verdadeiro Parlamento, no qual se defrontam concepções opostas de sociedade e alternativas divergentes de mudança. A situação hoje não depende mais do presidente, mas das condições criadas pelo Plano Real, implantado pelo atual governo. O mesmo se repete por toda a parte: a mudança social não é nesse momento implementada de baixo para cima, a partir das exigências sociais, mas de cima para baixo, pois as exigências sociais há muito perderam sua expressão autônoma.
Cabe ao Estado reanimar o sistema político, antes que este, por sua vez, crie as condições de surgimento de novos atores sociais. No México e na Colômbia, este movimento de fecundação de cima para baixo é impossível. Na Bolívia, ele é tão forte que acabará por vencer os obstáculos mais temíveis. No Brasil, é preciso reforçar o poder central.
Basta um exemplo para demonstrá-lo. Somente o poder federal é capaz de assegurar uma repartição mais equânime dos recursos com a educação repassados aos Estados e municípios, a fim de limitar a desigualdade no acesso ao ensino. O mesmo vale para a saúde. É preciso evitar a municipalização à moda chilena. Não se trata, porém, de cair no despotismo esclarecido. O Estado deve auxiliar a formação de um sistema político nacional e este deve acelerar a expressão direta das exigências sociais. Nesse sentido, é importante que o governo intervenha com decisão para pôr fim às grandes propriedades mal exploradas.
Sendo assim, como não concluir que o Brasil está nitidamente envolvido na reconstrução pós-liberal de uma sociedade com duas prioridades indissociáveis: o crescimento e a justiça? Como não concluir, em outras palavras, que o Brasil esforça-se em administrar politicamente as mudanças econômicas inevitáveis e necessárias?
É grande o contraste entre um México, por muito tempo o favorito dos investidores estrangeiros apesar do desgoverno, e um Brasil, elemento central do Mercosul, armado de forte vontade política e que prepara ativamente o despertar de uma sociedade que deverá protestar cada vez mais contra a injustiça, embora só poderá fazê-lo se o Estado tiver idéias claras e propósito firme, e se os legisladores se empenharem em manter a lei e as instituições ao serviço de uma democracia social.

Tradução de JOSÉ MARCOS MACEDO

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