São Paulo, domingo, 8 de outubro de 1995
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'O mundo está mais encantado'

JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI
ESPECIAL PARA A FOLHA

A questão filosófica de Deus, em particular a existência de Deus, é uma questão do século 18. Hoje o que importa são as práticas religiosas. Há, cada vez mais, um encantamento do mundo, ao contrário do que dizia um grande sociólogo, que era Max Weber.
Temos cada vez mais um mundo encantado ou um encantamento muito diverso daquilo que ele foi antigamente, mas esse mundo encantado e bonito está tomando conta das nossas vidas e eu não sei se é por bem ou é por mal.
(...)
Essa guerrilha entre as religiões é inerente à institucionalização das religiões ou não? Enquanto ficarmos em nossa religiosidade, enquanto formas de nossa experiência, se essa experiência se transforma na solidariedade com todos, muito bem. Mas certas pessoas não podem ficar exclusivamente na experiência e se engajam em determinadas instituições.
As instituições têm como fundamento a revelação de Jesus e a revelação da palavra de Deus. A questão é saber se esta revelação, por já ser uma atividade nominativa, não implica a exclusão de outras formas de revelação.
Portanto, por mais concórdia que se possa pedir aos ecumênicos, existe sempre nesta institucionalização da religião um pouco de duplo jogo: ``Nós estamos todos unidos para acabar com a fome do mundo ou para permitir as liberdades religiosas, mas a minha religião é mesmo a verdadeira".
(...)
Quanto mais institucionalizada a prática religiosa fica, quanto mais Deus e o demônio ficam nomeados, mais essa ilusão necessária se organiza, mais o espírito de seita aparece.
Com isso, estas religiões nominalizantes se aproximam muito mais dos fetiches do mundo contemporâneo. Não é à toa que, para certas igrejas, em particular para o pentecostalismo, chega-se a quase um politeísmo, porque não têm só Deus e os anjos, mas várias formas de diabo. Isso está muito ligado à vida cotidiana do povo na medida que hoje o mundo é um mundo cheio de fetiches.
(...)
O marxismo, tal como foi praticado politicamente na nossa geração, não só o Raymond Aron dizia que era o ópio dos intelectuais, mas várias vezes o Lévi-Strauss dizia que, para estudar a religiosidade no século 20, era preciso estudar Marx. Isso não significa que os filósofos que passam pelo marxismo sejam religiosos.
(...)
Eu já tive várias experiências religiosas, já rezei. Eu não fui coroinha, mas fui da cruzada eucarística até os 16 anos. Tive uma crise religiosa, já com uns 30 e poucos anos, passando pela Borgonha e vendo toda aquela arte de uma enorme profundidade.
Só que nesse momento o objeto de religião eram os portais das igrejas, não ia além. O problema de Deus já não estava mais como um problema importante para essa experiência.
(...)
Não quero encontrar na minha experiência religiosa qualquer objeto que saia além dela mesma. Quantas vezes, ao ouvir Bach, tenho a nítida sensação que gostaria de me ajoelhar e dizer: ``É muito grande isso que estou ouvindo". Essa idéia que vai além de nós mesmos é uma idéia presente. O erro lógico da religião é imaginar que essa experiência tem um correlato qualquer a não ser a experiência da nossa finitude.
(...)
Religião, a meu ver, é uma questão de foro íntimo. Ou melhor, essa experiência é uma questão de foro íntimo que eu não vejo como conciliar com a profissão de sacerdote. É uma atuação social com um estatuto, com funções, que presta serviços religiosos, com hierarquia ou não-hierarquia vem aos debates, discute, pensa no cristianismo e assim por diante, vai a conferências. Tudo isso não é mais foro íntimo.

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