São Paulo, domingo, 8 de outubro de 1995
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UM SEMINÁRIO DE MARX

ROBERTO SCHWARZ
ESPECIAL PARA A FOLHA

``A história mundial não existiu desde sempre; a história, como história mundial, é um resultado." Marx
(Introdução, ``Fundamentos da Crítica à Economia Política")
O marxismo está em baixa e passa por ser uma ladainha. Entretanto acho difícil não reconhecer que alguns dos argumentos mais inovadores e menos ideológicos do debate brasileiro dependem dele, com a sua ênfase no interesse material e nas divisões da sociedade. Será mesmo o caso de esquecer -ou calar- o nexo entre lógica econômica, alienação, antagonismos de classe e desigualdades internacionais? E será certo que a vida do espírito fica mais relevante sem estas referências?
Como tive a sorte de participar de um momento de marxismo crítico, me pareceu que seria interessante contar alguma coisa a respeito. Me refiro a um grupo que se organizou em São Paulo, a partir de 1958, na Faculdade de Filosofia, para estudar ``O Capital". O grupo deu vários professores bons, que escreveram livros de qualidade, e agora viu um de seus membros virar presidente da República. Naturalmente não imagino que o marxismo nem muito menos o nosso seminário tenham chegado ao poder. Mas mal ou bem é possível reconstituir um caminho que levou da Faculdade de Filosofia da Rua Maria Antonia e daquele grupo de estudos à projeção nacional e ao governo do país. Embora propício a deduções amalucadas, é um tema que merece reflexão.
Qual a origem do seminário? Como tudo que é antediluviano, ela é nebulosa e há mais de uma versão a respeito. José Arthur Giannotti conta que na França, quando bolsista, frequentou o grupo "Socialisme ou Barbarie", onde ouviu as exposições de Claude Lefort sobre a burocratização da União Soviética. De volta ao Brasil, em 1958, propôs à sua roda de amigos, jovens assistentes de esquerda, que estudassem o assunto. Fernando Novais achou que era melhor dispensar intermediários e ler ``O Capital" de uma vez. A anedota mostra a combinação heterodoxa e adiantada, em formação na época, de interesse universitário pelo marxismo e distância crítica em relação à URSS.
Quando o seminário começou a se reunir, as figuras constantes eram Giannotti, Fernando Novais, Paulo Singer, Octavio Ianni, Ruth e Fernando Henrique Cardoso. Com estatuto de aprendiz, apareciam também alguns estudantes mais metidos: Bento Prado, Weffort, Michel Lõwy, Gabriel Bolaffi e eu. A composição era multidisciplinar, de acordo com a natureza do assunto, e estavam representadas a filosofia, a história, a economia, a sociologia e a antropologia. Vivíamos voltados para a universidade, mas nos reuníamos fora dela, para estudar com mais proveito, a salvo da compartimentação e dos estorvos próprios à instituição. O ambiente era de camaradagem, muita animação, e também de rivalidade. Durante um bom tempo a primeira prevaleceu. A discussão e a crítica eram enérgicas, uns metiam o bedelho no trabalho dos outros, havia temas compartilhados e disputados, de sorte que o processo tinha uma certa nota coletiva, com pouca margem para a propriedade privada de idéias.
A cada encontro se explicavam e discutiam mais ou menos 20 páginas do livro. As reuniões se faziam de 15 em 15 dias, em tardes de sábado, com rodízio de expositor e casa, e uma comilança no final. Havia bastante desigualdade de posses entre os participantes, patente nas moradas respectivas, que iam do abastado e confortável ao sobradinho geminado e modesto. Não perguntei a opinião dos demais, mas lembro a diferença como um traço de união, a que não faltava alguma coisa poética. Em vez de atrapalhar, contribuía para nos dar o sentimento da primazia do interesse intelectual e político. A fórmula deu certo, e a geração seguinte montou um seminário de composição mais ou menos paralela, em 1963. Depois o costume entrou para o movimento estudantil, já no âmbito da resistência à ditadura de 64. Note-se que na época os círculos de leitura de Marx se multiplicaram em todo o mundo, uma "coincidência" que vale a pena examinar.
Com a morte de Stalin, em 1953, a divulgação das realidades inaceitáveis da União Soviética e da vida interna dos partidos comunistas ganhou em plenitude, também entre adeptos e simpatizantes. A incongruência com as aspirações libertárias e o espírito crítico do socialismo ficara irrecusável. Neste quadro, a volta a Marx representava um esforço de auto-retificação da esquerda, bem como de reinserção na linha de frente da aventura intelectual. Afrontava o direito de exclusividade, o monopólio exegético que os partidos comunistas haviam conferido a si mesmos em relação à obra de seus clássicos, da qual davam uma versão de catecismo, inepta e regressiva. À distância, o seminário paulistano sobre ``O Capital" fazia parte desta contestação, como aliás indica a inspiração lefortiana inicial. Com efeito, a crítica ao marxismo vulgar, bem como às barbaridades conceituais do PCB, era um de seus pontos de honra. Mas é fato igualmente que os descalabros da URSS, em fim de contas o desafio essencial para uma esquerda à altura do tempo, não ocupavam o primeiro plano em nossa imaginação. A aposta no rigor e na superioridade intelectual de Marx, embora suscitada pelo atoleiro histórico do comunismo, era redefinida em termos da agenda local, de superação do atraso por meio da industrialização, o que não deixava de ser abstrato e acanhado em relação ao curso efetivo do mundo. Voltaremos ao assunto.
A outra referência internacional foi a Revolução Cubana em 1959. Também ela desmentia o marxismo oficial, pois não foi feita por operários, não foi dirigida pelo partido comunista e não respeitou a sequência de etapas prevista na teoria. A sua grande repercussão quebrou a redoma localista em que vivia a imaginação latino-americana, a qual se deu conta, com fervor, de que era parte da cena contemporânea e de sua transformação, e até portadora de utopia. A incrível aventura dos revolucionários, em particular a figura ardente de Guevara, pareciam mudar a noção do possível; emprestavam um sentido novo à iniciativa pessoal, à independência de espírito, ao próprio patriotismo e também à coragem física, que mais adiante passariam por provações tremendas.
O contexto nacional, esquerda à parte, era formado pelo desenvolvimentismo de Juscelino, com o seu propósito de avançar 50 anos em cinco. Três décadas depois, lembrando o período, Celso Furtado observa que naqueles anos pareceu possível uma arrancada recuperadora, que tirasse a diferença que nos separava dos países adiantados. As indústrias novas em folha, propagandeadas nos semanários ilustrados e noticiários de cinema, os automóveis nacionais rodando na rua, o imenso canteiro de obras em Brasília, inspecionado pelo presidente sempre risonho, que para a ocasião botava na cabeça um capacete operário, o povo pobre e esperançado chegando de toda parte, uma arquitetura que passava por ser a mais moderna do mundo, pitadas de antiimperialismo combinadas a negociatas do arco-da-velha, isso tudo eram mudanças portentosas, animadas por uma irresponsabilidade também ela sem limites. O país sacudia o atraso, ao menos na sua forma tradicional, mas é claro que nem remotamente se guiava por uma noção exigente de progresso. Era inevitável, nas circunstâncias, que outras acepções mais estritas do interesse nacional, da luta de classes, da probidade administrativa etc. começassem a assombrar o ambiente, para bem e para mal.
Isso posto, o contexto imediato do seminário não era a esquerda nem a nação, mas a Faculdade de Filosofia. Em seus departamentos mais vivos, ajudada pelo impulso inicial dos professores estrangeiros, esta fugia às rotinas atrasadas e buscava um nível que fosse para valer, isto é, referido ao padrão contemporâneo de pesquisa e debate. Nova no ambiente, a natureza organizada e técnica do trabalho universitário tendia a desbancar as formas anteriores de produção intelectual. Tratava-se de um empenho formador, coletivo, patriótico sem patriotada, convergente com o ânimo progressista do país, de que entretanto se distinguia por não viver em contato com o mundo dos negócios nem com as vantagens do oficialismo. Daí uma certa atmosfera provinciana, séria, simpaticamente pequeno-burguesa, bem mais adiantada aliás que o clima de corte que marcava a intelligentzia encostada no desenvolvimentismo governamental (ver "Terra em Transe", de Glauber Rocha). Por outro lado, vinha também daí a consequência nas idéias, já que estas corriam num mundo à parte, que pouco sofria o confronto das correlações de força reais, pelas quais tínhamos franca antipatia.
Quando os jovens professores se puseram a estudar "O Capital", pensavam mexer com a Faculdade. Queriam promover um ponto de vista mais crítico e também uma concepção científica superior, ainda que meio esotérica no ambiente. O Brasil entrava por um processo de radicalização, e a reflexão sobre a dialética e a luta de classes parecia sintonizar com a realidade, ao contrário das outras grandes teorias sociais, mais voltadas para a ordem e o equilíbrio do que para a transformação. Entretanto, a consequência principal do seminário pode ter sido a inversa: através dele, a Faculdade é que iria influir de forma decisiva sobre o marxismo local.
Grosso modo, este havia existido como artigo de fé do Partido Comunista e áreas assemelhadas ou, ainda, como referência filosófica de espíritos esclarecidos, impressionados com a resistência soviética ao nazismo e opostos aos privilégios da oligarquia brasileira. Neste sentido, aliás muito positivo, o marxismo era uma presença doutrinária à antiga, apoiada no cotidiano e bebida em manuais, sem prejuízo da intenção progressista e das constelações modernas a que se referia. Além da bitola stalinista, contudo, a própria opção revolucionária e popular, bem como a perseguição policial correspondente -fontes naturais de autoridade- tinham contribuído para confiná-lo num universo intelectual precário, afastado da normalidade dos estudos e desprovido de relações aprofundadas com a cultura do país. Tanto é assim que os seus melhores resultados, até onde enxergo, ocorreram onde menos se espera. Encontram-se esparsos na obra de poetas e ensaístas com outra formação, de inserção cultural e histórica mais densa, como por exemplo Oswald e Mário de Andrade, que lhe sofreram a influência e aos quais o foco materialista no drama das classes, no interesse econômico e nas implicações da técnica sugeriu formulações modernas. O caso de exceção foi Caio Prado Jr., em cuja pessoa inesperada o prisma marxista se articulou criticamente à acumulação intelectual de uma grande família do café e da política, produzindo uma obra superior, alheia ao primarismo e assentada no conhecimento sóbrio das realidades locais.

Continua à pág. 5-5

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