São Paulo, domingo, 8 de outubro de 1995
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UM SEMINÁRIO DE MARX

ROBERTO SCHWARZ

A vida intelectual carioca evoluía em torno de organismos com repercussão nacional e saída afluente para o debate público; o contrário da escola da Rua Maria Antonia, ambiciosa e caipira
Pois bem, a ligação deliberada da leitura de "O Capital" ao motor da pesquisa universitária iria modificar o quadro e deixar a cultura marxista anterior em situação difícil. No essencial, o desnível indicava regimes diferentes da reflexão social, dos quais um se estava tornando anacrônico. Os aspectos modernos da Faculdade, que era uma instituição especializada, de estudiosos profissionais, deixavam patentes os lados arcaicos e amadorísticos das lideranças do campo popular. Como é óbvio, são mudanças históricas objetivas, que nada dizem do valor das pessoas, e aliás é certo que a institucionalização da inteligência tem por sua vez um preço alto em alienação e embotamento. Seja como for, a idéia de uma esquerda marxista sem chavão, à altura da pesquisa universitária contemporânea, aberta para a realidade, sem cadáveres no armário e sem autoritarismos a ocultar, era nova.
A intensidade intelectual do seminário devia muito às intervenções lógico-metodológicas de Giannotti, cujo teor exigente, exaltado e obscuro, além de sempre voltado para o progresso da ciência, causava excitação. A própria ala dos cientistas sociais se tinha compenetrado da missão fiscalizadora do filósofo, de quem esperávamos o esclarecimento decisivo, a observação que nos permitiria subir a outro plano, ou escapar à trivialidade. Superstições à parte, a vontade de dar um grande passo à frente, e o sentimento de que isto seria possível, estavam no ar. Por Giannotti e Bento Prado interpostos, o estudo de Marx tinha extensões filosóficas, que nutriam a nossa insatisfação com a vulgata comunista, além de fazerem contrapeso aos manuais americanos de metodologia empírica, que não deixávamos também de consumir. Apesar de desajeitada, a tensão entre estes extremos foi uma força do grupo, que não abria mão do propósito de explicar alguma coisa de real, e neste sentido nunca foi apenas doutrinário.
Entretanto, se não me engano, a inovação mais marcante foi outra, também devida a Giannotti, que na sua estada na França havia aprendido que os grandes textos se devem explicar com paciência, palavra por palavra, argumento por argumento, em vista de lhes entender a arquitetura. Paulo Arantes chamou atenção para a ironia do caso, em que a teoria mais crítica da sociedade contemporânea adquiria autoridade e eficácia entre nós através de sua associação à técnica da "explication de texte", mais ou menos obrigatória no secundário europeu (1).
Contudo, observe-se que no Brasil, a não ser pela literatura de uns poucos escritores, Machado de Assis à frente, a idéia de consistência integral de um texto não existia, de modo que a militância do filósofo trazia um claro progresso. Além disso é certo que os escritos de Marx, e em particular as páginas iniciais de "O Capital", exigem um grau excepcional de atenção. Note-se enfim que o aprendizado da leitura cerrada e metódica atendia às necessidades universitárias de iniciação e diferenciação. Tanto que estava em curso um movimento paralelo nos estudos literários, onde também se ensinava a ler "de outra maneira", diferente do comum. Sem alarde e com resultados admiráveis, cada um a seu modo, Augusto Meyer, Anatol Rosenfeld e Antonio Candido praticavam o "close reading" há algum tempo. Na mesma época, Afrânio Coutinho fazia uma ruidosa campanha pelo New Criticism, ao passo que os concretistas proclamavam a sua "responsabilidade integral perante a linguagem" (2). Em suma, a leitura dos textos e a explicação da sociedade se tecnificavam, de modo ora despropositado ora esclarecedor, mas sempre aumentando o desnível com os não-especialistas. Era a vez dos universitários que chegava.
Enquanto isto no Rio de Janeiro o Iseb ligava a dialética e a luta de classes ao desenvolvimentismo. A instituição era oficial, incluía vários antigos integralistas, não se fechava aos comunistas e entrava num processo de radicalização espetacular. Menos que o insólito da mistura, os nossos olhos estritos notavam o caráter mais nacionalista que socialista da pregação: tratava-se de um quadro claro de inconsequência, para o qual torcíamos o nariz. Não há dúvida que a falta de rigor existia, e que em 64 foi preciso pagar por ela. Mas é certo também que o Iseb respondia ao acirramento social em curso, por vezes de maneira inventiva e memorável, ao passo que as nossas objeções pouco saíam do plano trancado das posições de princípio. Atrás da antipatia é possível que estivessem, além da oposição teórica, o complexo provinciano dos paulistas e, de modo geral, as diferenças entre Rio e São Paulo.
Como é sabido, a vida intelectual carioca evoluía em torno de redações de jornal, editoras, partidos políticos, ministérios, ou seja, organismos com repercussão nacional e saída fluente para o debate público (sem falar em praias, boemia e mundanidades); bem o contrário da nossa escola da Rua Maria Antonia, ambiciosa e caipira, sofrendo da falta de eco nacional e tendo como bandeira o padrão científico, por oposição à ideologia. Além disso é possível que a aposta marxista "pura", voltada para a dinâmica autônoma da luta de classes, tivesse mais verossimilhança no quadro do capitalismo paulista. Ao passo que no Rio, com as brechas e verbas oferecidas à esquerda pela promiscuidade do nacional-populismo, não havia como dizer não ao Estado, cuja ambiguidade no conflito em parte era efetiva. No essencial, entretanto, a facilidade com que em 64 a direita iria desbaratar a esquerda, em aparência tão aguerrida, demonstrou o infundado das alianças desta, acabando por dar razão aos paulistas (3).
Dito isso, a contribuição específica do seminário veio por outro lado. Os jovens professores tinham pela frente o trabalho da tese e o desafio de firmar o bom nome da dialética no terreno da ciência. De modo geral escolheram assunto brasileiro, alinhados com a opção pelos de baixo que era própria à escola, onde se desenvolviam pesquisas sobre o negro, o caipira, o imigrante, o folclore, a religião popular. Comentando o deslocamento ideológico dos anos 30 e 40, a que a Faculdade se filiava, Antonio Candido apontou a novidade democrática e antioligárquica de um tal elenco de temas (4). Este o quadro em que a ruminação intensa de "O Capital" e do ``18 Brumário", ajudada pela leitura dos recém-publicados "História e Consciência de Classe", de Lukács, e "Questão de Método, de Sartre, dois clássicos do marxismo heterodoxo, iria se mostrar produtiva. O fato é que a certa altura despontou no seminário uma idéia que não é exagero chamar uma intuição nova do Brasil, a qual organizou os principais trabalhos do grupo e teve repercussão considerável. Sumariamente, a novidade consistiu em juntar o que andava separado, ou melhor, em articular a peculiaridade sociológica e política do país à história contemporânea do capital, cuja órbita era de outra ordem. Com a parcialidade do estudante que aproveitou apenas uma parte do que ouvia e lia, exponho em seguida os argumentos que mais contaram para mim.
O passo à frente está indicado no título do doutoramento de F.H. Cardoso, "Capitalismo e Escravidão no Brasil Meridional" (1962). A ousadia do livro, que estuda o Rio Grande do Sul oitocentista, estava no relacionamento complicado entre aqueles dois termos assimétricos, nem opostos nem próximos. Não se tratava de categorias complementares, à maneira da oposição entre casa-grande e senzala, cuja reunião compõe um todo sociológico; nem se tratava da culminação de um antagonismo global, à maneira, imaginemos, de "Escravismo e abolição". O que o livro investiga em pormenor são as conexões efetivas entre capitalismo e escravidão numa área periférica do país, área com certa autonomia, mas dependente do que se passava nos âmbitos centrais e na vizinha Argentina, onde vigorava o trabalho assalariado. Antes que o Senhor, ou a Liberdade, o outro da escravidão é o capitalismo, e este de modo muito relativo, já que é também a causa dela.
De entrada ficavam relativizadas pela história as polarizações abstratas entre escravidão e liberdade, entre os correspondentes tipos sociológicos, ou a identificação ideológica entre liberdade e capitalismo. Se em última análise o capitalismo é incompatível com a escravidão, e acaba por liquidá-la, por momentos ele também precisou, para desenvolver-se, desenvolvê-la e até implantá-la. De sorte que nem ele é tão avançado, nem ela tão atrasada. Assim, a escravidão podia ter parte com o progresso, e não era apenas um vexame residual. É claro que não se tratava aqui de elogiá-la, mas de olhar com imparcialidade dialética os paradoxos do movimento histórico, ou, ainda, as ilusões de uma concepção linear do progresso. Sem que a ponta polêmica estivesse explicitada, tratava-se de uma especificação importante e estratégica do curso da História, pois punha em evidência a ingenuidade dos progressismos correntes. No campo da esquerda, em especial, desmentia o itinerário de etapas obrigatórias -com ponto de partida no comunismo primitivo, passando por escravismo, feudalismo e capitalismo, pra chegar a bom porto no socialismo-, em que o Partido Comunista fundava a sua política "científica".
O caminho fora aberto por Caio Prado Jr., que na esteira aliás de Marx explicara a escravidão colonial como um fenômeno moderno, ligado à expansão comercial da Europa, estranho portanto àquela sucessão de etapas canônicas. Isso posto, o argumento de Caio tratava ainda de nossa pré-história. Já na monografia de F.H. Cardoso estamos em pleno Brasil independente, cujos movimentos nos dizem respeito direto. Usando terminologia posterior, mas cujo fundamento descritivo já se encontra aqui, o que temos é que o progresso nacional repõe, isto é, reproduz e até amplia as inaceitáveis relações sociais da Colônia. E pior ainda, quando enfim suprime a escravidão, não é para integrar o negro como cidadão à sociedade livre, mas para enredá-lo em formas velhas e novas de inferioridade, sujeição pessoal e pobreza, nas quais se reproduzem outros aspectos da herança colonial, que teima em não se dissolver e parece continuar com um grande futuro pela frente, o qual é preciso reconhecer, ainda uma vez, como fundado na evolução moderna da economia.
As implicações destes encadeamentos são numerosas. Para o que interessa aqui, retenhamos algumas. a) A história (do capital? da liberdade? da alienação? do país? do Rio Grande?) procede por avanços e recuos combinados; b) contudo ela avança, tanto que o capitalismo acaba obrigando à Abolição; c) ao avançar, ela não cumpre as promessas formadas no âmbito do conflito anterior; d) chegado o momento, o avanço tem a realidade de uma tarefa ineludível, em cujo cumprimento contudo há espaço para uma certa liberdade e invenção políticas, bem como para o surgimento de desumanidades novas; e) as taras da sociedade brasileira, objetivadas em sua estrutura sociológica ou de classes, não devem ser concebidas como resquícios do passado colonial, nem como desvios do padrão moderno (coisa que entretanto elas também são), mas como partes integrantes da atualidade em movimento, como resultados funcionais ou disfuncionais da economia contemporânea, a qual excede os limites do país. Contra as miragens ideológicas, cabe à crítica elucidar as relações de toda ordem, em especial as regressões, de que se compõe o progresso (aliás progresso de quem?).
A implicação mais inovadora, contudo, refere-se à aplicação de categorias sociais européias (sem exclusão das marxistas) ao Brasil e às demais ex-colônias, um procedimento que leva ao equívoco, ao mesmo tempo que é inevitável e indispensável. Fique de lado a crítica ao uso chapado de receitas, sempre justa, mas tão válida no Velho Mundo quanto entre nós. A dificuldade de que tratamos aqui é mais específica: nos países saídos da colonização, o conjunto de categorias históricas plasmadas pela experiência intra-européia passa a funcionar num espaço com travejamento sociológico diferente, diverso mas não alheio, em que aquelas categorias nem se aplicam com propriedade, nem podem deixar de se aplicar, ou melhor, giram em falso mas são a referência obrigatória, ou, ainda, tendem a um certo formalismo. Um espaço diverso, porque a colonização não criava sociedades semelhantes à metrópole, nem a ulterior divisão internacional do trabalho igualava as nações. Mas um espaço de mesma ordem, porque também ele é comandado pela dinâmica abrangente do capital, cujos desdobramentos lhe dão a regra e definem a pauta. À distância, esta meia vigência das coordenadas européias -uma configuração desconcertante e sui generis, que requer malícia diferencial por parte do observador -é um efeito consistente da gravitação do mundo moderno, ou do desenvolvimento desigual e combinado do capitalismo, para usar a expressão clássica. Já na perspectiva das ex-colônias, mais ou menos melhoristas pela força do ponto de partida, esperançosas e empenhadas na generalização local dos benefícios do progresso, a articulação inevitável de modernidade e desagregação colonial aparece como anomalia pátria, uma originalidade nos momentos de otimismo, uma diferença vergonhosa nos demais, mas sempre um desvio do padrão civilizado.

Continua à pág. 5-6

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