São Paulo, segunda-feira, 9 de outubro de 1995
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Relações perigosas

JOÃO SAYAD

"Não podemos continuar nos encontrando assim" é a expressão que marca o ápice dos encontros furtivos e o começo do fim da situação apaixonante que tem de se desenvolver em outra. É uma excelente metáfora para expressar a situação atual do Plano Real.
O Plano Real não pode continuar assim. Está indo muito bem, a inflação caiu, as reservas cambiais chegam a US$ 48 bilhões, tivemos superávit comercial em setembro, uma porção de bons resultados.
Paira uma ameaça sobre este idílio: podemos ser descobertos. Os juros que atraem os dólares ao Brasil não podem ser pagos pelo Tesouro Nacional, que é o principal pagador deles. Os cortes de gastos, por maiores que tenham sido, não conseguiram gerar recursos para pagar juros de 3% ao mês sobre uma dívida de US$ 85 bilhões. A receita de impostos não pode crescer para cobrir essas despesas financeiras. Se continuarmos assim, vamos ser pegos em flagrante -vão descobrir que a dívida pública nacional é impagável.
Desculpem colocar o problema desta forma, quase clandestina, mas faço um esforço para fugir da retórica governamental, que não ajuda a pensar sobre o problema.
A palavra oficial está sempre limitada pelo espírito de equipe, pelo que é politicamente aceitável e pela ambiguidade necessária para garantir às autoridades mudanças de rumo sem comprometer o princípio de que palavra de rei não volta atrás.
E a retórica dos editoriais da imprensa e das organizações empresariais que reclamam dos juros vive da ilusão de que as taxas vão cair quando o governo reduzir gastos. Infelizmente, a culpa não é do governo -os juros estão altos porque precisamos atrair dólares suficientes para manter o câmbio andando bem devagar e continuar nos encontrando furtivamente com esta deliciosa inflação baixa.
Como continuar? Podemos caminhar mais no sentido da dolarização. Permitir maior liberdade para indexar em dólares, nos aluguéis, nas prestações das vendas imobiliárias, nas prestações escolares, nos salários, na remuneração dos depósitos bancários. Vantagens: evitaria o esforço artificial de desindexação e permitiria preços menores. Os aluguéis poderiam ser mais baixos e as aplicações financeiras, mais longas.
Por que o Banco Central não pode, a partir de agora, só emitir dívida pública indexada em dólares? Seria mais barato para o governo, mas os juros seriam menores. Desvantagem: a taxa de câmbio não poderia mais ser usada para corrigir balanço de pagamentos.
Hoje, uma correção cambial também não pode ser usada para corrigir o balanço de pagamentos sem causar muita inflação. Esse custo, portanto, já está sendo pago, e os benefícios de uma âncora mais efetiva no dólar não estão sendo aproveitados. Já pagamos os pecados da sobrevalorização cambial, que ameaça a indústria instalada no Brasil, e não usufruímos todas as vantagens do câmbio fixo.
O Plano Real pode ir mais longe ainda, permitindo primeiro que algumas empresas e setores tenham depósitos em dólares no Brasil. No limite, poderíamos até escolher a alternativa argentina -dólares e reais circulariam igualmente.
Vantagens: o Banco Central não precisaria comprar os dólares que entram no país e, portanto, a dívida pública não precisaria crescer tanto. Desvantagens: o sistema bancário brasileiro não poderia contar com o Banco Central como emprestador de última instância. Os depósitos compulsórios dos bancos no Banco Central teriam de ser muito grandes.
Mas essa já é a situação atual. O total de depósitos compulsórios do sistema bancário soma, segundo declarações oficiais, US$ 40 bilhões. Mais uma vez, parece que pagamos os preços de uma dolarização efetiva do sistema de pagamentos sem usufruir todas as vantagens.
A decisão é difícil e as propostas de mais dolarização, muito arriscadas. Copiar o Chile, uma economia pequena e aberta? Copiar o México, um país vizinho do banco central americano e que aspira a tornar-se mercado comum dos Estados Unidos, uma espécie de grande Havaí continental? Seguir a trilha da Argentina, nem grande nem pequena, mas mais aberta do que o Brasil, mais internacional e com a coragem de um tango para propor uma solução radical?
Não há uma solução óbvia e sem risco. Faltam reflexões e idéias sobre alternativas intermediárias: mais indexação em dólar, mais liberdade para deter dólares, com vantagens e desvantagens.
Uma coisa é certa: não podemos manter esta ambiguidade, continuar nos encontrando assim por mais tempo. Isso custa 3% de US$ 85 bilhões por mês. Pobres de nós: o tempo aqui é muito caro, precisamos decidir.

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