São Paulo, segunda-feira, 9 de outubro de 1995
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Pró-álcool: uma morte anunciada

ROGÉRIO CEZAR DE CERQUEIRA LEITE

O debate sobre a conveniência do Pró-álcool recai sempre na questão da competitividade dos custos de produção, quanto não de preços ao consumidor desse combustível face aos demais.
Durante muito tempo, por ingenuidade ou por malícia, se fez a comparação entre petróleo e álcool. Os analistas petrolíferos, indignados, confrontavam custos de produção do álcool com os preços internacionais do petróleo.
``O álcool custa para a Petrobrás R$ 48 o barril e o petróleo, apenas R$ 18", dizem, e concluem que o álcool combustível seria antieconômico.
O álcool é um combustível consumido diretamente, e o petróleo é uma matriz que fornece vários insumos. Comparar os preços dessas duas substâncias é simples idiotice. Seria o mesmo que confrontar os preços do boi no pasto e o do peito de ``frango à Kiev". E concluir que carne de frango é antieconômica.
Além do mais, se esquece que a produção de gasolina inclui vários custos adicionais, tais como o processamento físico e químico que resulta no fracionamento, as perdas de matéria-prima, o transporte, os custos da divisa (subvenções à importação, por exemplo).
E, não obstante, foi assim que massiva propaganda contra o Pró-álcool colocou o problema. Àquela época foi proposta uma analogia entre o petróleo que se ``fracionava" em ``múltiplos derivados" e o boi que se esquartejava em suas partes convencionais.
Os preços dos derivados do petróleo seriam, dentro de certos limites, determinados administrativamente ou por forças de mercado, da mesma forma que são os dos vários pedaços do boi.
O filé mignon custa mais do que a carne de pescoço em qualquer país do mundo, mas há uma certa variação da razão entre os dois preços, de acordo com o mercado. O mesmo acontece com os derivados de petróleo nos poucos países em que o governo não administra preços de combustíveis.
Essa analogia induziu analistas a compararem os preços do álcool combustível e os da gasolina. Comparavam a cana -que é a matriz para a produção de vários derivados, a saber, álcool, energia elétrica, bagaço, vinhoto etc.- com o petróleo, de um lado, e, de outro, o álcool com a gasolina.
Em primeiro lugar, é bom não esquecer que na maioria dos países industrializados e em desenvolvimento os preços de combustíveis são administrados.
Os Estados Unidos são um país, entretanto, em que condições ``quase ideais" de mercado prevalecem no setor do petróleo. Lá o fracionamento, isto é, o percentual a ser produzido de cada derivado, é determinado pela demanda e preços, e por esta via ajustado.
O paralelo era atraente porque, também como o Brasil, os EUA produzem aproximadamente a metade do petróleo que consomem. Embora usem em geral o de melhor qualidade, a combinação de petróleo interno e custos de produção fortemente diversificados é, em certa medida, semelhante àquela do Brasil.
As gasolinas norte-americanas custam para o distribuidor entre US$ 30 e US$ 32 o barril, e o preço do álcool hidratado entregue ao distribuidor (Petrobrás) fica em R$ 48. Todavia, a carga tributária e encargos sociais correspondem a quase 30% desse último valor, e aquele mencionado para a gasolina nos EUA não inclui impostos.
É preciso não esquecer que encargos sociais são expressivos até para o segmento agrícola da agroindústria canavieira onde, no Estado de São Paulo, 90% dos empregados do setor agrícola têm suas carteiras registradas, em contraste com o restante da agricultura, que apresenta apenas 5% dos trabalhadores com sua situação regularizada.
Essa comparação deve também ser corrigida pela atual distorção cambial em que o real está supervalorizado em relação ao dólar em pelo menos 30%.
Somente essa correção tornaria o álcool combustível competitivo com a gasolina. Quando, entretanto, todas as demais correções são introduzidas, as vantagens, já mesmo do ponto de vista puramente financeiro, se tornam consideráveis em favor do álcool.
Além do mais, os custos de produção do álcool vêm diminuindo sistematicamente, enquanto que os dos derivados de petróleo dependem de circunstâncias políticas e, muito provavelmente, crescerão, senão a médio, pelo menos a longo prazo. Seria o álcool, portanto, competitivo com a gasolina, se essa comparação fosse aceitável.
Mas puristas argumentariam que somente uma análise completa dos custos de produção de todos os derivados do petróleo, em confronto com aqueles dos produtos da cana-de-açúcar (exceto o açúcar obviamente), seria válida. Todavia, isso é impossível no Brasil.
Em primeiro lugar porque o fracionamento, ou seja, as proporções dos vários derivados são definidos por razões de ordem econômica e social. Além disso, não há acesso aos dados econômicos detalhados de produção, prospecção e extração do petróleo brasileiro.
Vimos, por exemplo, que se tentarmos incluir os investimentos declarados oficialmente (com as devidas correções monetárias) e amortizados no tempo de vida média das reservas, os custos de produção do petróleo brasileiro seriam incompatíveis com os preços dos derivados de petróleo em prática atualmente no Brasil (``O altruísmo dos sanguessugas da Petrobrás", Folha, 13/11/94).
Não restam dúvidas, portanto, de que, mesmo do ponto de vista meramente financeiro, o álcool é competitivo. Todavia, a adequação econômica de um combustível precisa ser examinada de maneira muito mais ampla, como faremos em outro artigo a ser publicado nesta mesma seção na próxima semana.

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