São Paulo, segunda-feira, 9 de outubro de 1995
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Um herdeiro de Trasímaco

ROBERTO ROMANO

Trasímaco: ``Cada governo estabelece leis para a sua conveniência. Promulgadas tais leis, dizem que é justo para os governos aquilo que lhes convém... há um só modelo de Justiça em todos os Estados -o que convém aos poderes constituídos".
Sócrates: ``Os governantes são infalíveis ou capazes de errar?".
Trasímaco: ``Eles cometem algum erro..." (``República").
O trecho mostra um Platão realista, longe da ``pura teoria". As leis devem ser obedecidas. Mas os legisladores erram. Mesmo Trasímaco concorda.
A Justiça Militar estadual existe. Errou quem lhe concedeu suas atuais prerrogativas. Leis, certas ou erradas, não são eternas. O público e muitos parlamentares já percebem os estragos produzidos e buscam mudar tal situação.
Daí a campanha virulenta dos militantes daquele segmento. É correto que eles se defendam. Mas no Estado de Direito vale o debate. Trasímaco serve para as tiranias, os regimes do silêncio.
``Um rapaz cheio de espírito, mas extremamente perigoso." A frase está no relatório policial sobre Diderot. Repressores imaginam os filósofos como crianças perigosas: por ``infantilismo" (como a defesa dos cidadãos contra autoridades truculentas), os condenam à cicuta, às prisões, ao exílio. Todo adepto de Sócrates encontra seu Trasímaco.
Quem não capta raciocínios, ameaça com a força ou usa argumentos ``ad hominem". A última via foi empregada no artigo de Getúlio Corrêa, ``Os nefelibatas, os filósofos e a Justiça Militar" (Folha, 29/9). Por discordar das teses corporativistas, eu teria feito -em escrito publicado nesta coluna- obra de ideólogo ignaro e pueril.
O autor proclama-se isento de paixão e ideologia, dominando totalmente a objetividade e o saber. Semelhante truque retórico é velho e só convence os estólidos. Mais democrático seria ele admitir que defende um ponto de vista.
E que os proponentes de outros prismas, embora com razões ponderáveis, se equivocam. Este é o bê-á-bá da polidez acadêmica e do diálogo intelectual, ignorado pelo sr. Corrêa.
O texto aponta Voltaire. A inteireza do ``Dicionário Filosófico" é ``esquecida". Seriam embaraçosos para o articulista os verbetes sobre ``tortura" e ``liberdade de pensamento".
``Malheur à une nation qui, étant depuis longtemps civilisée, est encore conduite par d'anciens usages atroces!" (verbete ``Torture"). O sr. Corrêa, no seu caderno de ``frases célebres", erra ao escolher o nome.
Se tivesse lido Voltaire, saberia que o campeão do caso Calas, sem carteira de advogado, desmascarou tribunais que absolviam agentes da lei, torturadores e praticantes de crimes conexos.
O filósofo ficaria triste ao ver seu livro usado em prol de um segmento jurídico com institucionalidade discutível, notável pela demora em punir pessoas que matam, torturam, massacram e são promovidas enquanto seus processos seguem o ritmo da tartaruga. Voltaire não merece esta sorte!
Citei ``Esprit", onde se examina o nexo entre Judiciário e cidadania. São invectivados os juízes que tendem a confundir publicidade com exibicionismo. Eles aparecem na mídia para mostrar sua casa, mulher e bichos de estimação. Mesmo em movimentos sérios, como o das ``mãos limpas", existem tais indivíduos prejudicando a reforma democrática do poder a que pertencem.
Se tivesse lido a revista, como procede um leitor culto, veria que eu indiquei um problema geral: os óbices subjetivos e objetivos para tornar públicos e democráticos os procedimentos judiciários.
Ignorando a fonte citada (não existe tradução da revista pela Tecnoprint), imaginou que me referia à Justiça Militar estadual já naquela altura do texto.
A chicana mostra que o articulista está aquém dos procedimentos científicos. A razão para a inexistência, em ``Esprit", de textos sobre a Justiça Militar provincial, nos moldes brasileiros, é que na França, terra de Voltaire e Diderot, essa anomalia jurídica não existe.
O articulista quer ``ocupar espaço" jornalístico. Páginas, na imprensa autônoma, não são ``ocupadas". Elas são oferecidas aos que discutem idéias.
Nesta coluna lutaram Alceu Amoroso Lima, Florestan Fernandes e outros, apontados como ``nefelibatas" pelos donos do poder. Nela importa o contraditório. Discordar no plano das idéias, defender a liberdade de exprimir diferenças. Isto é Voltaire.
Os esbirros de Collor ``ocuparam" espaço na Folha. Democratas asseguram semelhante tribuna livre. O sr. Corrêa cita os ``nanicos do Orçamento".
Procure, neste jornal, minhas invectivas contra eles quando, poderosos ainda, acobertavam sua traição à pátria. Não tenho lição a receber dele no campo da livre escrita. Não possuo lobby no Parlamento. Nesse, muitos representam a cidadania. Outros curvam-se diante dos grupos corporativos.
Como os milhões de ``nefelibatas" democráticos, sei que toda uma Constituição pode ser abolida, sobretudo quando sua raiz histórica é um ``status quo" ditatorial.
O assassinato de um homem já preso na televisão, a demora nos processos, as promoções dos responsáveis pelo Carandiru, as proezas de Corumbiara, tudo isto aumenta a ingovernabilidade.
Sem mudanças no julgamento dos policiais que matam cidadãos, envergonhando seus pares honestos, breve as ameaças e a retórica serão incapazes de salvar as atuais prerrogativas da Justiça Militar estadual.

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