São Paulo, domingo, 15 de outubro de 1995
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O céu que nos espera

JURANDIR FREIRE COSTA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Entre 1836 e 1844, os funcionários da Biblioteca Nacional criaram o "Inferno", título dado às obras eróticas ou pornográficas vetadas ao público por motivos religiosos. Cento e cinquenta anos depois, aproximadamente, o "Inferno" abriu as portas. Robert Darnton, entre outros historiadores, visitou-o (Mais!, de 9/7/95). No "Inferno" havia muita coisa grotesca, divertida e fora de moda, mas nada que, nem de longe, fosse "infernal". Para o olhar moderno, um só episódio parece pitoresco: os homens perdiam a cabeça com a gordura acumulada nos braços e costas das mulheres. Segundo Darnton: "A gordura nas costas produzia dobrinhas na `chute de reins', um ponto sensual logo acima das nádegas...". Outros tempos, outros infernos. O segredo do "Inferno" sexual de ontem eram a gordura e as dobrinhas na "queda dos rins"!
Este ano, a vetusta Universidade de Oxford, com a ajuda de um grupo de americanos, editou uma versão politicamente correta da Bíblia. O Pai Nosso, deve ser recitado como "Pai e Mãe nossos..."; toda menção "à mão direita" foi abolida para não discriminar os canhotos; a expressão "os judeus que mataram Jesus" foi substituída por "aqueles que mataram Jesus" etc. Simultaneamente à reforma da Bíblia, Jack Miles, ex-jesuíta, fez uma biografia de Deus, revelando a verdadeira natureza da moral divina: "Para nós, como para Ele, o amor vem (quando vem) no final da vida, não no começo. Os jovens entendem facilmente a crueldade. Só os velhos entendem verdadeiramente o amor. Assim, mesmo que nós, como Ele, falemos nostalgicamente sobre o amor, o amor está antes à nossa frente que às nossas costas. O amor pode ser nosso destino, mas, decerto não é nossa origem" (Mais! de 3/9/95).
Podemos tratar jocosamente estes eventos ou tomá-los como sintoma de algo interessante de ser pensado. No final do século 20, os escândalos sexuais do "Inferno" são irrisórios e os céus e deuses ``made in USA" ou ``in England" já nascem comprometidos com os mais escancarados interesses mundanos. O que podemos, então, aprender com textos sagrados politicamente corretos; com a fugacidade de nossas crenças sexuais e, finalmente, com um Deus que só descobre o Amor, ``as time goes by"?
Muitos podem dizer: esta é a miséria de toda cultura sem fundamentos e finalidades últimas. Perdemos a confiança nas normas universais da razão e, junto com ela, a esperança numa verdade que nos consolava. Falamos de qualquer lugar, sem compromisso com a fidedignidade do que dizemos. Não mais agimos e pensamos com vistas à permanência dos feitos e discursos. Tudo, hoje, pode ser redescrito. Construímos mundos e naturezas humanas instáveis. Nossos "infernos prá francês crer" e nossos "céus prá americano ler" são, ao mesmo tempo, o real e o simulacro. Somos impostores que cultivam deliberadamente a impostura, e triste é o destino dos que abandonam o amor da "verdade" pelo oportunismo do politicamente fácil ou do moralmente cômodo.
Mas será que todo este luto pela "razão perdida" tem razão de ser? Será que existe algo de muito grave nessa recriação incessante de nossos objetivos morais? Penso que não. Certa vez, Brecht, falando da Europa de Karl Kraus, disse: "Quando a era morreu por suas próprias mãos, ele foi essa mão". Lido de outra forma, todo imaginário cultural vem à luz por "nossas mãos". Por ele somos responsáveis e nenhum "sexo" ou "Deus", além ou aquém de nós, pode cumprir a tarefa que nos foi dada, ou seja, criar mundos e humanidades à imagem e semelhança das nossas preocupações. Mas isto tem seus ganhos.
Observar, por exemplo, que as sexualidades proibidas ou permitidas são produto da contingência de nossas formas de vida moral pode ajudar-nos a ver melhor a estupidez do preconceito e o despropósito de certas crenças científicas atuais. Depois de conhecer as entranhas do "Inferno", seria curioso perguntar aos crentes no "determinismo genético" das preferências sexuais, qual o gene que "determina a atração erótica por `gordura e dobrinhas na chute de reins' "! Uma boa lição retirada do "Inferno": só pesquisamos aquilo que a norma moral recomenda pesquisar. Primeiro, a verdade de oratório; depois, a de laboratório.
O que vale para o sexo, vale para a religião. A leitura politicamente correta da Bíblia, pode significar ganância dos editores, mas também aposta em um mundo mais justo. O fato das políticas de minorias serem, às vezes, míopes e prisioneiras do vocabulário da discriminação do qual tentam descolar-se, não invalida a tentativa de se inventar uma gênese mítica das relações humanas menos opressiva. O Deus de Miles ilustra bem este esforço. Como qualquer um de nós, ele erra, acerta, volta atrás, coça a cabeça, exaspera-se, enternece-se, distribui castigos à torto e à direito, e, no fim de tudo, renuncia à vaidade narcísica e descobre que o Amor é melhor do que o sofrimento e a violência. É um Deus simpático, carente de provas de afeição, e quando se torna impiedoso é porque necessita desesperadamente do outro. Assim como a criança, nas teorias de Freud, Ferenczi, Balint, Lacan ou Winnicott, a divindade milesiana age como quem responde à dor ou à angústia do desamparo original.
O mito de Miles, diria Rorty, é uma fábula edificante. Tenta ensinar de modo simples o que é complicado teorizar: sempre que agimos sem o apoio de uma traição moral sólida, podemos agir como tontos. Damos cabeçadas à toa; ferimo-nos e ferimos os outros, até podermos renunciar à força solitária, em troca do convívio feito de regras morais consentidas. O novo Deus californiano, como os membros da horda primordial de Freud, teve que inventar o Bem e o Mal, partindo do ponto zero da identidade moral.
Este trabalho nos foi poupado. Não temos porque recomeçá-lo. Miles e as minorias americanas não discutem nem reinventam "verdades eternas". Partem da prática moral do pluralismo e do direito à livre expressão do pensamento, para sugerirem mundos alternativos menos cruéis e mais solidários. Os órfãos da "razão universal perdida" não têm porque chorar. Não nos reconhecemos como sujeitos morais porque temos, ``in natura", as mesmas convicções racionais sobre as origens do mundo e dos homens, mas porque criamos mitos que nos tornam moralmente próximos uns dos outros. Quando Kafka dizia "meu povo, desde que tenha um...", falava da solidão dos que, apesar de conhecerem as verdades racionais, jamais puderam sentir-se "chez soi" num ambiente hostil às diferenças humanas.
Miles diz coisas que merecem ser ouvidas. Diz, por exemplo, que o amor está à nossa frente e não às nossas costas, e talvez não seja preciso, como seu Deus, esperar tanto tempo para aprender o que ele tardiamente aprendeu. Para os homens de razão, isto é uma bobagem de domingo. Replico pragmaticamente: tente! E se não der certo, faça como o Deus de Miles, tente de novo! Talvez, assim, o céu que nos espera torne-se, enfim, o céu que nos protege.

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