São Paulo, domingo, 15 de outubro de 1995
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A primazia do segredo

MARIA ALZIRA BRUM LEMOS
ESPECIAL PARA A FOLHA, DE MADRI

"Coração Tão Branco" é a primeira tradução brasileira de um romance do escritor espanhol Javier Marías, 44. Mas não se trata de um estreante. Em 25 anos, Marías construiu uma carreira tão prolífica quanto exitosa. Publicou oito romances, traduções, ensaios, biografias e artigos e tem obras traduzidas em dez países.
Em julho, recebeu o Prêmio Rómulo Gallegos, concedido pelo governo da Venezuela, por seu último romance, "Amanhã na Batalha Pensa em Mim".
Trata-se de um autor plural. Dialoga com a tradição castelhana de Cervantes e Villarroel, com a literatura inglesa do século 18, com Euclides da Cunha e com a produção literária espanhola e latino-americana contemporânea. Escreve e polemiza sobre os mais variados assuntos.
Ex-professor em Oxford e na Universidade Complutense de Madri, Marías prefere a ficção -uma forma de expressão em que a contradição não excluiria a coerência à teoria e afirma escrever para o "leitor possível".
Marías pertence a uma família de intelectuais -é filho do filósofo Julián Marías- e artistas. É cinéfilo e o cinema é um de seus temas favoritos. Orgulha-se de que uma cena de "Coração Tão Branco" haja inspirado a Almodóvar, em "Kika". Na esteira do sucesso editorial, um de seus romances, "Todas as Almas", vai virar filme em breve na Inglaterra.
Enquanto a imprensa festeja o prêmio, cujo dinheiro afirma que vai gastar em "namoradas e amigos", Javier Marías prepara seu próximo romance. Em sua casa em Madri, ele falou à Folha sobre sua vida e formação, literatura, cinema e o livro "Coração Tão Branco".

Folha - Por que o sr. se fez escritor?
Javier Marías - Comecei a escrever aos 12 anos. A escritura foi um prolongamento da leitura. Eu lia Dumas, Salgari, histórias de aventuras. Quando cheguei num ponto em que não havia mais o que ler, comecei a escrever, imitando meus escritores favoritos. Minhas primeiras histórias eram imitações descaradas das que eu lia. Depois disso houve muitas fases e costumo dizer que continuo escrevendo porque não gosto de ter chefe nem de madrugar.
Folha - Como você define as fases de sua escrita?
Marías - Aos 19 anos publiquei meu primeiro romance, que enquadro dentro da fase mimética. Era uma narrativa cinematográfica, uma espécie de paródia ou homenagem ao cinema americano dos anos 40 e 50. Era como um roteiro, escrito num estilo seco, com pouca adjetivação.
Em seguida publiquei dois romances, utilizando modelos mais adultos: Conrad, Henry James e Conan Doyle. Apesar da boa acolhida que tiveram, não quis seguir fazendo este tipo de literatura. Passei seis anos sem publicar, só traduzindo. Entre 78 e 83, publiquei dois livros, bem diferentes dos anteriores. Eram textos barrocos, densos, com linguagem e estrutura complicadas, frases e parágrafos muito longos.
Os romances que publiquei a partir de 86 rompem com o estilo juvenil: não são miméticos, não têm a ânsia do experimentalismo nem o afã pela originalidade. Hoje eu não faria mais exercícios literários e aprendi que a originalidade é algo que se adquire. Minha escrita é complexa, mas não densa. Em certo sentido creio que estou "maduro".
Folha - O que o trabalho da tradução acrescentou à sua escrita?
Marías - Traduzir é um exercício literário de primeira grandeza. O tradutor é ao mesmo tempo um leitor e um escritor privilegiado, porque quando se traduz não somente se lê, mas se reescreve. Os autores que traduzi me ensinaram muito. Laurence Sterne, por exemplo, de quem traduzi "Tristan Shandy", me mostrou formas de manejar o tempo na literatura. Na prática da tradução aprendi também dos textos de James, Conrad e Isaak Dinesen, entre outros.
Folha - Que outros autores influenciam sua literatura?
Marías - Os escritores espanhóis são quase sempre vistos como parentes de Cervantes. Aceito o parentesco. "Tristan Shandy" é um texto cervantino, como são cervantinos seus seguidores. Recebi, como é natural, grande influência da literatura em língua espanhola. Citaria Diego de Torres Villarroel (escritor do século 18), sobretudo por sua biografia. Entre os contemporâneos, Valle Inclán e Juan Benet. Este último, que morreu há dois anos, era um escritor difícil, mas magnífico. Jorge Luis Borges e Bioy Casares também me influenciaram.
Devo muito também, entre os estrangeiros, a Flaubert e Vladimir Nabokov. O brasileiro Euclides da Cunha é um autor que admiro, mas não posso dizer que me influenciou diretamente, uma vez que o contexto que trabalho é muito diferente. Tenho particular fraqueza pelos "Sertões", uma prosa majestosa, que tem afinidades com a do inglês Thomas Brown (do século 18), a quem também admiro muito. Creio que algumas vezes em meus romances tento alcançar este estilo nobre que tinha Euclides da Cunha.
Folha - O sr. é reconhecido como cinéfilo. De que maneira o cinema está presente na fase mais recente de sua narrativa?
Marías - Uma vez ouvi de Cabrera Infante que, na construção de uma obra literária, a influência dos quadros e dos filmes, das coisas vistas em geral, é maior que a das vivências. Eu não digo que seja assim no meu caso. Mas o cinema está presente em grande medida na invenção de meus romances. Embora eles não sejam em si mesmo cinematográficos, contêm elementos cinematográficos. Um deles, "Todas as Almas", vai virar filme na Inglaterra.
Folha - A "movida" dos anos 80 gerou valores culturais que persistem como signos da Espanha no estrangeiro, como o cinema de Pedro Almodóvar. O que o trabalho de Almodóvar representa no atual contexto?
Marías - Almodóvar atualizou e perverteu o realismo castelhano, com o humor que lhe caracteriza. Ele faz em seus filmes, como também fazia Luis Buñuel, com que pareça verdadeiro um mundo disparatado. Este é o humor castelhano, é o humor do ``Quixote", que não tem nada a ver com um certo tipo de humor amargo que se pôs em evidência na vida cotidiana nos últimos anos. Admiro muito o cinema de Almodóvar. Não sei se é pretensioso contar, mas ele me disse que a primeira cena de "Kika", em que uma mulher vai ao banheiro para se suicidar, foi baseada na primeira cena de "Coração Tão Branco.
Folha - "Coração Tão Branco" trata, entre outras coisas, do lugar do segredo num mundo ávido por informação...
Marías - Sim. Este romance é o anti-romance policial, porque nele ninguém quer descobrir o segredo. Há algo que aconteceu no passado, mas ninguém está investigando. O narrador pensa em muitos momentos que é melhor não perguntar sobre o acontecimento. Quando o livro saiu aqui, muita gente acusou esse personagem de covarde. Não estou seguro.
O segredo não é algo tão mal, mas algo relativamente civilizado. Temos a mania de querer saber tudo e é muito difícil renunciar à curiosidade. Acontece que às vezes as consequências de saber são catastróficas e, uma vez que sabemos, não há maneira de fugir deste conhecimento. O livro fala do desejo de não saber algo que, por fim, acaba se impondo.
Folha - O casamento é apresentado no livro como "uma instituição narrativa". Que papel jogaria o ato de contar numa relação amorosa?
Marías - Dizer que o casamento é uma instituição narrativa significa que entre os casais há uma tendência maior a viver as coisas, pensando em como vão contá-las um ao outro. Ao contar estamos mudando as coisas ocorridas, embelezando-as muitas vezes, fazendo-as mais suportáveis. Talvez o principal signo de que algo vai mal num casamento é quando já não há o que contar, quando se produz o silêncio.
Folha - Na Espanha muitos leitores têm identificado o narrador de "Coração Tão Branco" ao escritor Javier Marías. Onde está o limite do autobiográfico neste romance?
Marías - Aqui, onde me conhecem, realmente existe esta tendência. Creio que os que pensam assim notam que no livro há momentos de reflexão e comentários, o que os leva a acreditar que o autor teve de pensar isto e que, portanto, este pensamento lhe pertence de alguma maneira.
Dois elementos deste romance já existiam na vida real ou na minha vida. A primeira cena, a do suicídio de uma mulher recém-casada e aparentemente feliz, aconteceu há muitos anos em minha família. Ninguém nunca soube o porquê deste gesto. É uma história que sempre ouvi contar e da qual hoje já não restam testemunhas vivas. Pensei que uma forma de saber o que haveria acontecido seria inventá-lo. Também a avó cubana, um dos personagens secundários, é o retrato de uma das minhas avós. Outros elementos são absolutamente inventados.
Nunca faço trabalho de pesquisa para escrever um romance. Acho mesmo que faço literatura para não fazer teses, ensaios ou coisas do gênero. Pego coisas daqui e dali, mas, no fundamental, literatura é ficção.

A OBRA
Coração Tão Branco, de Javier Marías. Tradução de Eduardo Brandão. 306 págs. Martins Fontes (r. Conselheiro Ramalho, 340, CEP 01325-020, São Paulo, tel. 011/239-3677). R$ 24,50

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