São Paulo, domingo, 15 de outubro de 1995
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Um adeus à democracia

RENATO JANINE RIBEIRO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Pode ser que estejamos vivendo, hoje, a agonia de um modelo político que é o democrático representativo. Poucos anos atrás, o fim desse regime político era de certo modo requerido pela esquerda, que queria a transformação do mundo e acentuava as falhas que a representação, enquanto adjetivo, impunha à democracia, como substantivo. A esquerda assim defendia uma democracia direta -da qual fazem parte os procedimentos de consulta popular previstos na Constituição de 1988, estudados por Victoria Benevides e José Álvaro Moisés. Já na centro-esquerda se propunha o que chamava de participação, que foi um dos lemas do governo Montoro em São Paulo.
Mas o fato é que esse ideal parece ter falido, arrastado pela queda do muro de Berlim (injustamente, porque não se pode confundir uma esquerda democrática, mesmo radical, com as tiranias do Leste europeu). E hoje a ameaça à democracia representativa parece vir da direita -só que não mais da direita militar, que dava golpes nos anos 60 e 70, e sim de uma direita que, de seu controle sobre a economia, extrai um poder, ímpar no mundo pós-Segunda Guerra Mundial, sobre as relações sociais. Vejamos.
Benjamin Constant, o pensador franco-suíço que foi um dos grandes teóricos do liberalismo nos começos do século 19, explicou, numa conferência de 1819, as razões do fracasso da Revolução Francesa. Alguns de seus líderes (diz) queriam uma liberdade que servia para os gregos, mas não para os modernos. A liberdade antiga pertencia ao povo na praça: era ilimitada para o coletivo, quase nula para o indivíduo. Já o moderno deseja a liberdade para o indivíduo, ainda que à custa da sua participação na coletividade.
Por isso, se o grego fazia questão de tomar parte nas decisões, afirma Constant, em nosso tempo, para haver uma dimensão política da liberdade, basta que a autoridade -e pouco importa se a elegemos (Estados Unidos) ou não (os reis da França e Inglaterra)- nos reconheça o direito de lhe dirigir reclamações (que ele chama de "representações"), as quais "ela é mais ou menos obrigada a levar em conta".
Assim, implicitamente, Constant delineia duas idéias de representação. Uma, que chamarei de representação em sentido forte, é o direito do cidadão a eleger seu governante. Mas isso, dos países que ele cita, só ocorre na América do Norte, e não seria o essencial na liberdade moderna. Essencial é o que podemos chamar representação em sentido fraco: o direito de reclamar ao governante. Este constitui o mínimo inarredável da liberdade moderna.
Ora, se voltamos à democracia representativa, notamos que ela se construiu com base na representação em sentido forte: o direito dos cidadãos a constituir o poder de Estado que neles manda. A crítica de esquerda afirmava que tal democracia era insuficiente, por apostar no desinteresse dos cidadãos pela coisa pública. Para avivar esse ânimo, o melhor seria dar aos homens condições de intervir, diretamente, nos assuntos sociais e políticos.
Contudo, se percebemos o que ocorreu nestes últimos anos, desde o esvaziamento do mundo comunista, o que ressalta é o sério crescimento do poder econômico, a ponto de escapar ao controle dos governos nacionais e até de órgãos multinacionais, como a União Européia.
Quando houve a crise da libra esterlina, em 1992, o Bundesbank foi apontado como o vilão, mas, de lá para cá, até a maior força financeira dos Estados europeus parece inadequada para controlar o poder da moeda para saltar as fronteiras nacionais. Basta lembrar o pavor que rondou o Brasil quando o México quebrou, assinalando um perigo que perdura e que nosso governo não teria como enfrentar.
O resultado é que as autoridades eleitas -isto é, representativas- foram esvaziadas de seu poder, de modo que a crítica tradicional (de esquerda) a um poder que não presta contas a seus representados acabou perdendo parte de seu sentido: na verdade, ele até deixou de ser um poder! O poder que subsiste é um que nunca foi eleito, o das finanças que rodam pelo mundo.
Mais grave, ainda, é que com isso também se dissolve o sentido que chamei mínimo da representação: não há mais a quem se queixar. Arrisco a hipótese de que a estabilidade mínima do político requer que, mesmo quando não nos reconhecemos numa autoridade como sendo seus eleitores, se pelo menos a reconhecemos enquanto autoridade a quem podemos dirigir uma fala, ainda temos um perfil razoável de identidade simbólica do espaço social enquanto determinado pela política. É este o mínimo que foi apontado pelos teóricos do nascente Estado moderno, entre eles, Hobbes, com o ``Leviatã".
Mas como ficam as coisas, se não temos nem sequer essa autoridade? Voltamos àquela frase típica do Brasil-Colônia (isto é, de um poder que não é Estado nacional, nem democrático, nem representativo): "Vá queixar-se ao bispo..." O poder efetivo está tão confiscado por esses circuitos mais ou menos anônimos, quase inidentificáveis, de poder financeiro, que a autonomia do Estado praticamente se desfez e, com ela, as instâncias de atendimento a agravos.
Disso resultam duas séries de perguntas. Uma decorre do sentido forte da representação: para que eleger um governante, se ele pode tão pouco (isto é, se tudo o que pode é seguir um roteiro determinado de fora, mas terá a maior dificuldade para desviar-se dele, ainda que esta seja a intenção sua e de seus eleitores)? E daí, para que a democracia, o Estado nacional, a representação política? Essas questões são sérias e exigem respostas não-retóricas, isto é, que discutam qual a possibilidade de decisões democráticas sobre as questões principais de nossas vidas.
Outra série vem do sentido fraco ou mínimo de representação: quem responde pelo mal de origem humana ou social? A quem nos queixar, em quem depositar esperanças? Tais questões, nota-se, podem ser postas mesmo não havendo democracia, porque dizem respeito a um poder que pode, até, ser carismático, ou autoritário. Mas elas são o mínimo para que haja poder de perfil político, isto é, um poder no qual as decisões passem, minimamente que seja, pelo espaço público, pela discussão em linguagem natural entre os homens. Se não houver isso, o que haverá?
Haverá, talvez, um poder cujos circuitos de comunicação se tornem financeiros; cujo discurso aos homens se revista de uma objetividade fria, gelada, a dos números que tornam necessária tal ou qual receita (a "privatização" é, delas, a mais visível); cuja linguagem, por isso mesmo, deixa de ser aberta à interlocução (àquela diversidade de opiniões básica na democracia), para se travestir de uma necessidade diante da qual empalideceria a própria ciência exata nos tempos do determinismo.
Caminhamos para isso. O aparelho de Estado se divide em setores que lidam com a economia, ditos sérios, com os maiores recursos, enquanto os que tratam da cultura, meio ambiente e ciência passam por secundários, descartáveis, por luxo. Da mesma forma os jornais hierarquizam seus cadernos: cultura é lazer, economia é a lei do mundo. Da tese de que a economia dita o rol de possibilidades, àquela segundo a qual ela determina a necessidade, vai só um passo.
Concluído este processo, fale-se quanto se quiser em diversidade de opiniões distintiva da democracia: tudo isso só valerá como curiosidade. A diversidade opinativa nenhum peso terá ante a decisão séria, unívoca, da economia. Só resta saber se, como essa retórica exatista da economia neoliberal, não se dissolve o mais belo fruto da cultura ocidental, a política, que nos acostumamos, desde o fim da Segunda Guerra Mundial, a considerar como democrática.

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