São Paulo, domingo, 15 de outubro de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

nem só de pão, de droga

MARILENE FELINTO

As plantações de maconha nos esconderijos de Cabrobó, Pernambuco, a mescalina dos altiplanos peruanos, a cocaína dos Andes bolivianos, o haxixe das montanhas maometanas, a heroína que circula em picos ao ar livre, nas ruas do centro de Frankfurt, Alemanha: cenário suficiente para que se devesse fazer um julgamento moral, se não da droga, de quem a utiliza.
Mas a droga é tão antiga quanto o homem. E quem ousaria julgar o homem só porque ele não se suporta a si mesmo? É claro que hoje, diferentemente das sociedades primitivas, a droga é preciosa mercadoria, que transforma em poderosos e perigosos magnatas o traficante dos morros cariocas ou o miserável camponês boliviano. A frustração PESSOAL, porém, não mudou: o homem contemporâneo deve ser mais frustrado do que o primitivo.
É preciso certa dose de compreensão para aceitar o transe da moça da festa, trincada de cocaína, os olhos virando, os dentes rangendo feito cachorro louco, a boca espumando um amontoado desconexo de frases. Espantoso é que ela parece não ter noção do estado degradante em que se encontra. A alucinação do cara que, perto dela, tomou ácido, revela o momento exato em que a ilusão se converte em percepção enganadora -ou seja, em que, por efeito dos estimulantes, as representações da fantasia fingem coisas que não existem, como diz o manual.
O pior nesse rapaz e nessa moça é a imagem que eles têm de si: de que, por tomarem drogas, são a vanguarda comportamental do mundo. O impulso que os leva à cocaína ou ao ácido é o mesmo que leva o menino de rua a cheirar cola de sapateiro. Mas o casal da festa se acha "in", porque é rico, pode sustentar com luxo o vício que os faz suportar a si mesmos. No fundo, a moça é uma babaca casadoira e insegura; e o cara é um frustrado, a reproduzir na vida real o modelo de seus pais.
Sempre associei drogas a gente rica, a um ou dois namorados loiros, com cara de Curt Cobain, que me introduziram a esse mundo na universidade: sem qualquer atração pela coisa, cedi a experimentar as mais leves, para testar o que eles chamavam de as vantagens de uma noite de sexo sob o efeito de drogas.
O resto era incompreensível. Difícil entender como se pode gostar de cocaína, o gosto horrível de éter, o pó corroendo as ventas lá por dentro. Quanto aos bestalhões prostrados por seus cigarros de maconha, sempre me lembraram índios inocentes na floresta virgem. Ouvia-se falar de gente que tomava chá de lírio ou comia, com cocô e tudo, cogumelos alucinógenos que cresciam no esterco das vacas.
Minha tendência era condenar. Depois percebi que o impulso para superar a personalidade autoconsciente é um anseio capital da alma, como observa o escritor americano Aldous Huxley. Uns recorrem a métodos baratos, e talvez menos violentos, de 'autotranscendência: lápis e papel, por exemplo.
Outros, como diz Huxley, vendo ``baldados os seus esforços para superarem a si mesmos pelo culto, pelas boas ações e pela atividade intelectual, tornam-se propensos a recorrer às drogas substitutas da religião". Já diz a Bíblia que o homem não viverá só de pão, mas da palavra que sair da boca de Deus -de ficção, pois, de fantasia, de ilusão.

Texto Anterior: DURA ESCOLHA; SINUCA DE BICO; GALINHONA; IDENTIFICAÇÃO
Próximo Texto: todo dia tem cara de sexta-feira
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.