São Paulo, domingo, 15 de outubro de 1995
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Gente que traz

DALMO MAGNO DEFENSOR
ESPECIAL PARA A FOLHA

No passado recente, quando era praticamente proibida a importação de bens de consumo duráveis, a fronteira do Brasil com o Paraguai era a mais importante porta de entrada para as maravilhas da tecnologia alienígena.
Não conheço, por exemplo, uma só pessoa que tenha entrado para o mundo do videocassete, nos anos 80, adquirindo seu aparelho em loja, com nota fiscal e garantia.
Era praxe recorrer ao descaminho, e havia motivo.
Primeiro: os vídeos importados custavam pouco mais da metade dos nacionais. Segundo: eram mais modernos. Terceiro: jamais se corria o risco de levar "gato por lebre, como acontecia, por exemplo, na compra de uísque.
Ao tomar pelo Johnnie Walker Black Label um líquido da mesma cor, mas vendido a preço de pinga em garrafa sem selo, muita gente se encharcava com o tristemente célebre "Juanito el Caminador, Tarjeta Negra, fabricado às margens do Paraná.
Felizmente o país tem avançado bastante nesse campo, e, graças à gente que traz, tem aparecido por aqui o melhor e o pior do estrangeiro, de miojo americano a cédulas alemãs de 50 reais.
Até ao consumidor mais preguiçoso, que só vai ao comércio por obrigação, é oferecida uma chance de inserção no mercado internacional: basta que ligue a TV.
Há pessoas que têm os cartões de crédito puídos de tanto fazer roc-roc nas maquininhas de imprimir comprovantes.
Os meus, não: estão seminovos, ainda com manual do proprietário e estepe sem uso. Não sou consumista.
Contudo, passo vontade ao ver esses comerciais de importados, acessíveis mediante um simples telefonema e o fornecimento do número do cartão de crédito.
Eles demonstram tão brilhantemente os benefícios trazidos por seus produtos que chego a pensar que eu era infeliz e não sabia.
Há meses assisti a um incrível comercial-teste de aditivo lubrificante. Algumas gotas substituíam litros de óleo em um enorme motor diesel, que era posto a funcionar, desculpe a impropriedade, a todo vapor -sem sofrer danos.
Um líquido para vidros, por sua vez, dá ao pára-brisa do carro a dignidade do cristal da Boêmia. Nem mesmo um jato de água lamacenta impede que o motorista prossiga a jornada com perfeita visibilidade.
Wok, como sabe qualquer criancinha, é aquela panela de ferro em forma de Câmara Federal, utilizada na cozinha chinesa.
Impressionado com a perícia do demonstrador e com as virtudes do artefato (aliás, às vezes é difícil distinguir um do outro), lambi os beiços imaginando uma bela pizza hemisférica.
A mãe de todos, naturalmente, é aquele comercial das facas, tão afiadas que seu uso deveria requerer porte de arma. Cortam canos, pregos, tênis e, se necessário, comida. É a tentação à qual resisto há mais tempo.
Os comerciais deixam meus dedos formigando, a milímetros das teclas do telefone, mas, na hora agá, a consciência do orçamento estreito, uma espécie de "Grilo Falante financeiro, me aconselha a permanecer no ambiente do comedimento.
É um lugar sem luxo, porém mais acolhedor do que salões dos cartórios de protesto.

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