São Paulo, segunda-feira, 16 de outubro de 1995
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Teologia federal

JOSUÉ MACHADO

O teólogo e professor Francisco Catão tomou um susto quando relia com especial enlevo o livro "Mysterium Salutis" (O Mistério da Salvação), título latino do original alemão mantido na tradução brasileira da Editora Vozes. A releitura da obra em seis volumes organizada por Johannes Feiner e Magnus Lõhrer transcorria serena até o momento em que Catão trombou com a surpreendente expressão "teologia federal" no Tomo 5 do Volume 4. Como o havia lido antes em alemão, estranhou.
"Teologia federal?", pensou com seus discretos botões. Seria uma teologia imposta por um poder federal neoliberal ou neo-social? Seria a "teologia federal" diferente de uma teologia estadual severa proposta por um governador bem-humorado como o Covas? Ou diferente e mais ampla do que uma teologia municipal sugerida por um prefeito empreendedor como Maluf, baseada no combate ao fumo nos restaurantes e apoiada pela combativa Câmara Municipal?
Não seria possível, conclui Catão com dominicana tranquilidade. Por todos os bons anjos, não. Foi então conferir com o original. Lá estava "Bündestheologie", que se traduziria bem por "teologia da aliança", porque "Bündes significa federação, acordo, mas também aliança. O pio tradutor talvez tenha sido influenciado pelo nome "Bündesrepublik" Deutschland, República Federal da Alemanha.
Ainda bem que, ao traduzir, o santo homem não se influenciou pela onomatopéia, em que o som da palavra prevalece, às vezes com algum risco, pensou Catão piedosamente, permitindo-se perdoável dose de malícia. "Bündes"... Sorte também, o que daria no mesmo, não ter sido traído pelo falso cognato, aquilo que parece mas não é. Por exemplo, "lunch", em inglês, que significa almoço, às vezes é traduzido por lanche. Não ficaria bem traduzir a sonora "Bündes" por palavra semelhante em português, dada a transcendentalidade do assunto. Seria quase pecado. Mas teologia federal?
Pelas barbas do Lula!

Cada macaco...
"Se os partidos não tiverem seus representantes, o próprio Luís Eduardo nomeará os deputados para as comissões, de 30 membros cada."
O Luís Eduardo citado é o presidente da Câmara de Deputados, filho do senador Antônio Carlos Magalhães, ambos do pefelê. E a palavra "cada" é o que os sábios chamam de pronome indefinido. Mas um pronome daqueles que não podem aparecer sozinhos, sem apoio. Ele é como certos partidos políticos, que não vivem desacompanhados; estão sempre junto ao "pudê", seja qual for, não é novidade.
Enfim, não fica bem utilizar "cada" sem o "um" que lhe dá apoio nesse caso, como fez o computador. Se não tivesse se distraído, teria escrito "... 30 membros cada um".
"Cada" é sempre pronome adjetivo, por isso não aparece isolado como os pronomes substantivos, que substituem nomes, ficam no lugar deles. São os pronomes, também indefinidos, mas substantivos, como "alguém", "todos" e outros da mesma natureza, além, claro, dos pronomes pessoais como eu, tu, você etc. Esses podem substituir nomes numa boa e estão aí para isso, efetivas como aquelas criaturas em que votamos para nos representar.
"Alguém meteu a mão na grana do Orçamento."
"Todos pecaram."
Como se vê, não é o caso de "cada". Portanto, jamais "30 membros cada", "R$ 12 cada" e assim por diante. Sempre, nesses casos de enumeração, formando parelha, chamada locução pronominal indefinida, com "um" e com "qual": "cada um", "cada qual". E "cada coisa", "cada pessoa", "cada o-que-quer-que-seja".
"Os deputados? Cada um deles vota desinteressadamente."
"Cada qual dá o que tem."
"Não se preocupe com o dia de amanhã porque cada dia tem sua própria carga de mal."
"Cada macaco no seu galho."
"Cada coisa em seu lugar."
"Eles são os expoentes da corrupção nossa de cada dia." Pessimismo, claro; não é bem assim. Não é, não.

Bebê a bordo
A revista anuncia o desembarque do pesquisador brasileiro em Roma:
"Debaixo do braço, ele levava um projeto de pesquisa."
Aí está o que se pode chamar de imagem de gosto discutível. A moçada quer movimentar o texto, fugir do trivial, criar metáforas, iluminar a própria obra e sai algo assim, com o brilho de uma sopa de breu.
O amigo pesquisador não levou malas, uma pasta de executivo ou de cientista para guardar seu projeto? Levou o disquete ou o alfarrábio assim, debaixo do braço? Que deselegância.
Melhor não usar metáforas do que usá-las singelas, atravessadas, esquálidas, diria nosso Conselheiro.
Tem de ser debaixo do braço? E se estiver calor, passaporte, passagens, maletas, o sujeito suando, o projeto escorregando, manchado... Imagem coalhada, de gosto azedo. Fosse o cidadão um francês com a baguete debaixo do braço, como costumam elas andar sem nem sequer embrulhá-la, vá lá.
Ainda bem que o projeto não aterrissou na mesa do reitor. Ótimo também que o pesquisador não tenha levado o projeto a bordo de seu bolso. Sim, a bordo. Qualquer dia dirão de alguma senhora grávida que ela leva a bordo o futuro rebento que receberá na pia batismal o nome de Frufru das Abobrinhas.
Imagens como essas costumam ter a eficiência do ataque de nervos, ou melhor, do ataque dos sonhos do Mengão: Edmundo, Romário e Sávio. Um é "nervioso" e leva mais bolachas do que dá; outro é sonolento; o outro cai e do chão não passa. Por isso já o estão chamando de ataque dos sete anões, ou melhor, dos três anões: Zangado, Soneca e Atchim Cai-Cai.

JOSUÉ R.S. MACHADO é jornalista, formado em línguas neolatinas pela PUC-SP. Colaborou em diversos jornais e revistas.

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