São Paulo, segunda-feira, 16 de outubro de 1995
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Pró-álcool, uma morte anunciada 2

ROGÉRIO CEZAR DE CERQUEIRA LEITE

Vimos na primeira parte deste artigo (Folha, 9/10) que, do ponto de vista puramente financeiro, o álcool é competitivo com a gasolina, mas há outros aspectos econômicos a serem considerados. Consideremos, por exemplo, o recente ``experimento" em São Paulo com a restrição da circulação de 20% de carros devido à poluição local ocasionada por emissão de óxidos de enxofre, de nitrogênio e de monóxido de carbono.
Se a gasolina corrente não contivesse 20% de álcool anidro e se não existisse um remanescente de quase 30% de carros movidos a álcool hidratado, São Paulo já estaria hoje nas mesmas condições que Milão, Atenas, Santiago, México e outras cidades, para as quais a metade dos investimentos proporcionais efetuados, tanto na implantação da indústria automobilística quanto na produção de veículos, está ociosa. E cidades como Porto Alegre, Belo Horizonte e Rio de Janeiro já estão nas pegadas de São Paulo.
Outra perda econômica enorme é aquela devido à produção de dióxido de carbono e do consequente efeito estufa. A produção de álcool não subtrai CO2 da atmosfera como pretendem alguns técnicos brasileiros, é verdade. Pois os processos de fixação do carbono (produção de carbonatos, carvão mineral, petróleo etc.) são muito mais lentos (e ineficazes, portanto) do que aqueles que produzem CO2 (ou outros gases responsáveis pelo efeito estufa, como metano, por exemplo). Mas ao substituir uma parcela do combustível fóssil, o álcool de origem vegetal deixa de contribuir, nessa proporção, para o efeito estufa. Embora ainda não no Brasil, as consequências do degelo das calotas polares já são percebidas em algumas regiões. E, cedo ou tarde, vamos começar a sentir esses efeitos no Brasil.
Um outro aspecto econômico fundamental do sucateamento do Pró-álcool está sendo o desemprego. A produção de petróleo é capital-intensiva enquanto a do álcool é intensiva em mão-de-obra. O álcool emprega aproximadamente 700 mil em contraste com o petróleo, com 55 mil. Levando em conta as quantidades de energia produzidas nos respectivos setores, chegamos à conclusão de que cada emprego que é criado no setor de petróleo pela redução da produção de álcool extermina neste setor pelo menos 100. Poder-se-ia argumentar que toda produção intensiva em mão-de-obra é indesejável, pois a qualidade de vida a ela associada será necessariamente limitada. Todavia, resta ver se esse é o momento adequado para exterminar esses empregos.
Pois bem, cerca de 20% das usinas de álcool já fecharam e quase todas as demais não tiveram recursos para modernização nem sequer manutenção adequada. Outras estão convertendo suas instalações para produção de açúcar.
Resta-nos apenas descobrir por que o governo brasileiro abandonou o Pró-álcool, para dizer o menos, exatamente quando EUA e Europa subvencionam fortemente a produção do álcool e de outros compostos oxigenados para uso como combustível ou aditivo. Como vimos, não pode ser por razões de ordem econômica. Além do mais, foi um grande sucesso do setor privado nacional. Satisfaz os mais exigentes cânones conservacionistas. É socialmente adequado para os nossos tempos. Então o que estaria errado com o Pró-álcool?
A perseguição ao Pró-álcool começou em um momento de força da corporação interna da Petrobrás, quando um presidente dessa empresa se associou ao corporativismo retrógrado para lançar a mais devastadora campanha de desmoralização que este país já testemunhou. Mas essa onda foi ultrapassada. Em realidade, foram os governos Fernando Collor, Itamar Franco e Fernando Henrique que mais castigaram o Pró-álcool. Globalização e neoliberalismo parecem incompatíveis com um projeto eminentemente nacional. Há um conflito ideológico intransponível para os neoliberais.
É preciso eliminar todas as diferenças, as individualidades, para que nos assemelhemos, mais ainda, para que emulemos o Primeiro Mundo. Não há carro a álcool no Primeiro Mundo, como é que podemos ousar divergir? Para globalizar, é preciso que nos identifiquemos, que nos submetamos ao Primeiro Mundo. Esse negócio de álcool é coisa de Terceiro Mundo. Precisa ser abandonado. E, assim, sucumbe o único projeto de combustível alternativo ao petróleo entre dezenas que países, principalmente do Primeiro Mundo, experimentaram obsessivamente, e que teve sucesso e foi a maior glória brasileira. Mas cometeu o crime de ser original.

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