São Paulo, segunda-feira, 16 de outubro de 1995
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Corporativismo nefelibata

HÉLIO BICUDO

É perfeitamente compreensível que, ao se buscar mudanças que interessam à sociedade no seu conjunto, no objetivo de alcançar a democratização de seus órgãos e instituições, ocorram colisões com interesses corporativos ardorosamente defendidos. E, exatamente por serem corporativos, centrados na manutenção de privilégios, os seus defensores vivem como que num mundo à parte, desconhecendo a realidade que está logo ali, na ponta de seus narizes.
O sr. Getúlio Corrêa, autor do artigo ``Os nefelibatas, os filósofos e a Justiça Militar", publicado nesta página, em 29/9, é juiz auditor da Justiça Militar de Santa Catarina. Nada mais natural que se empenhe na manutenção de um sistema de que é parte.
Mas o que não se pode negar, nesse episódio em que se procura, com restrições à competência da Justiça Militar das PMs, restabelecer o princípio de que a Justiça não pode manter distinções em razão das pessoas, é que as milícias estaduais jogaram -e nisso foram coadjuvadas por determinados setores do Exército- todo o peso de uma força, que conta hoje com o poderio de um efetivo ao redor dos 350 mil homens, para impor a continuidade de um sistema de impunidade que, por via de consequência, acalenta a violência policial.
A manutenção do substitutivo Ibsen Pinheiro pela Comissão de Constituição e Justiça do Senado foi um equívoco escorado num parecer que, concluindo, embora, pela sua aprovação, concordava que se tratava de um ``minus" a ser logo mais implementado por projeto mais abrangente, como o originariamente apresentado à Câmara dos Deputados. Não há dúvida de que mergulharam nas nuvens aqueles que não quiseram ver a realidade, pois dela se alienaram para negar validade à proposta do senador Roberto Freire, que restabelecia essa mesma realidade.
Não há, a propósito, similitude entre a Justiça Militar das Forças Armadas e a Justiça Militar das PMs. Uma nada tem a ver com a outra. Enquanto numa se trata infrações e delitos cometidos por militares enquanto militares, a Justiça Militar das PMs não julga crimes militares, mas crimes comuns praticados em funções eminentemente civis, que são as funções de policiamento.
A esse propósito, o comandante da PM do Rio de Janeiro, em depoimento perante a Comissão da Câmara Federal, demonstrou, com uma série de exemplos então trazidos à colação, que a atuação das milícias estaduais não é militar, mas apenas policial, o que quer dizer civil, seja quando exercem o policiamento ostensivo, seja quando servem à comunidade atendendo a muitas de suas premências.
E mais: o ministro Sepúlveda Pertence, ao participar de sessão pública realizada na casa do povo, a propósito da reforma do Poder Judiciário, mostrou-se sem rebuços pela competência da Justiça comum para o julgamento desses crimes.
Ainda a esse respeito, sabe-se, e assim ensina o Supremo Tribunal Federal em recente julgado pelo seu pleno, que os crimes militares situam-se no campo da exceção, jungidos ao princípio constitucional da reserva legal, merecendo, pois, interpretação estrita. Nesse caso, a Suprema Corte entendeu, apenas contra o voto do relator, tratar-se de crime comum o praticado por militar das Forças Armadas contra policiais militares em serviço, sendo competente para o julgamento a Justiça comum (H.C. 72.022-6, Paraná, publicado no D.J. de 28/4/95).
Como se vê, pois aí se tratava de homicídio, chove no molhado o Congresso Nacional quando manda ao júri processo e julgamento de eliminações praticadas por PMs, e o que é de pasmar, mantendo, para sua apuração, o inquérito feito no interior dos quartéis...
Ademais, a democracia não se compadece com a aceitação passiva de uma decisão que, data venia, se aparta do que se deva entender por interesse público. Nessa hipótese, tanto o parlamentar como o filósofo não podem esmorecer porque perderam uma batalha, conscientes de que a sociedade, pelos seus segmentos mais representativos, abona suas posições, que não têm outros interesses que não sejam os da própria sociedade como um todo.
Nessa ordem de considerações, pode-se concluir afirmando que, na defesa de princípios e não de interesses corporativos, invertem-se pretensas recomendações e sugestões, quando ofensas e rancores não deveriam, como está patente no artigo de início mencionado, ilustrar o raciocínio descosido e nefelibata de um ``magistrado", empenhado, talvez até sem o saber, na conservação de regras advindas da ditadura militar.

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