São Paulo, quarta-feira, 18 de outubro de 1995
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Saramago anuncia a cegueira da razão

BIA ABRAMO
DA REPORTAGEM LOCAL

O novo romance do escritor português José Saramago informa-nos algo terrível: estamos todos cegos. Sobre a razão, desceu uma cegueira branca, contagiosa e que leva o mundo a uma entropia rápida e implacável.
Com lançamento simultâneo no Brasil e em Portugal, "Ensaio Sobre a Cegueira" é o testemunho de de um dos maiores escritores vivos e um dos últimos humanistas convictos sobre um mundo que caminha para direto a barbárie. Saramago, 73, falou a Folha por telefone de Lisboa.

Folha - O tema de seu novo livro, "Ensaio sobre a Cegueira", tem alguma relação com o fato de o sr. ter sofrido uma cirurgia no olho em 93?
Saramago - Não acho que tenha sido direta. Também não vou dizer que o fato de eu ter estado de certo modo em risco de ter ficar com a visão bastante diminuída não teve nenhum efeito.
Mas o tema da cegueira tem muito mais que ver com uma convicção minha, que nós, no que toca a razão, estamos cegos. Uma vez que decidimos que somos os únicos seres racionais na face da Terra, o que foi uma decisão nossa, ninguém veio cá de fora, vindo de outro planeta ou de outro sistema, dizer que nós somos racionais. No meu entender, nós não usamos racionalmente a razão.
É um pouco como se eu dissesse que nós somos cegos da razão. Essa evidência é que me levou, metaforicamente, a imaginar um tipo de cegueira, que, no fundo, existe. Vou criar um mundo de cegos porque nós vivemos efetivamente num mundo de cegos. Nós estamos todos cegos. Cegos da razão. A razão não se comporta racionalmente, o que é uma forma de cegueira.
Folha - O novo romance me pareceu bastante desesperançado, diferente dos outros romances do sr., onde o tom é mais otimista. O sr. perdeu, de alguma forma, a esperança?
Saramago - Estou de acordo que esse meu livro é um livro desesperançado, pessimista. O mundo em que nós vivemos parece-nos dizer isso muito claramente. Ainda que nossa atitude não deva ser de todo desesperançada -e eu deixo, no fim do livro, uma porta entreaberta, que sem ela não podemos viver, mas a verdade é que nós vivemos num mundo terrível.
Parece muito salutar deixar de parte otimismos que nos impedem de ver a realidade. A essa altura da minha vida, diante do espetáculo do mundo em que eu vivo, independentemente das razões pessoais que eu tenha para me sentir feliz ou contente no meu pequeno mundo, é minha obrigação não apenas escrever livros que distraiam.
Impôs-se-me de fato o que era uma espécie de obrigação: tu não podes calar aquilo que tu pensas, aquilo que tu vês. Vamos escrever esse livro, que é um livro duríssimo, é um livro que me doeu escrever. Tenho que dizer que sofri muito a escrever esse livro. Não por causa das dificuldades da narrativa, não. Eu sofri, como eu penso que alguns leitores mais sensíveis vão inevitavelmente sofrer.
Folha - O sr. queria dar um sentido especial ao fato de a única pessoa a conservar a visão ser uma mulher?
Saramago - As minhas personagens verdadeiramente fortes, verdadeiramente sólidas são sempre figuras femininas. Não é por que eu tenha decidido, é porque sai-me assim. Não há nada de premeditado. Provavelmente isso resulta de que parte da humanidade em que eu ainda tenho esperança é a mulher. E estou à espera, já há demasiado tempo, que a mulher se decida a tomar no mundo o papel que não seja o de uma mera competidora do homem. Se é só para ocupar o lugar que o homem tem desempenhado ao longo da história, não vale a pena. O que a humanidade necessita é qualquer coisa de novo, que eu não sei definir, mas ainda tenho a convicção que pode vir da mulher.
Folha - O sr. acha que esse novo seria talvez uma razão revivificada pelo afeto?
Saramago - Acho que a grande revolução, e o livro fala disso, seria a revolução da bondade. Se nós, de um dia para o outro, nos descobríssemos bons, os problemas do mundo estavam resolvidos. Claro que isso nem é uma utopia, é um disparate. Mas a consciência de que isso não acontecerá, não nos deve impedir, cada um consigo mesmo, de fazer tudo o que pode para reger-se por princípios éticos. Pelo menos a sua passagem por este mundo não terá sido inútil e, mesmo que não seja extremadamente útil, não terá sido perniciosa. Quando nós olhamos para o estado em que o mundo se encontra, damos-nos conta de que há milhares e milhares de seres humanos que fizeram de sua vida uma sistemática ação perniciosa contra o resto da humanidade. Nem é preciso dar-lhes nomes.
Mas tenho convicção que, pelo menos, deve-se seguir essa regra muito simples, que é egoísta, mas esse é um egoísmo bom, que é o de não fazer aos outros aquilo que não queremos que nos façam. Minha velha avó já o dizia e os avós de meus avós já o disseram.

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