São Paulo, quarta-feira, 18 de outubro de 1995
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Autor vê humanidade com rigor

DA REPORTAGEM LOCAL

O novo romance de Saramago, "Ensaio Sobre a Cegueira", começa com um acontecimento insólito: um homem, ao volante de seu carro parado no sinal de trânsito, fica cego de repente.
Como em "Jangada de Pedra", uma ocorrência quase fantástica -mas nada próximo do realismo fantástico latino-americano e sim muito mais vizinho de uma postura onde a realidade criada pela literatura não só pode, mas tem a obrigação de comportar os feitos da imaginação- põe em funcionamento um mecanismo novo e, talvez muito mais acurado, de compreensão do mundo.
O primeiro cego torna também privados da visão a sua mulher e o seu médico oftalmologista. A cegueira se alastra como uma epidemia -calamidade pública. Grupos cada vez mais numerosos de cegos são confinados em um manicômio desativado. Sem ver -o que equivale aqui a pensar e a agir eticamente-, os cegos aprisionados vão degenerando em uma brutalização progressiva e medonha.
Ou nas palavras de Saramago: "'Ensaio sobre a Cegueira' é uma espécie de 'imago mundi', uma imagem do mundo em que vivemos: um mundo de intolerância, de exploração, de crueldade, de indiferença, de cinismo. Mas dirão: 'também há gente boa'. Pois há, mas o mundo não vai nessa direção." Há pessoas humanizáveis, pessoas que vão se humanizando por um esforço de supressão de egoísmos. Mas o mundo no seu conjunto não vai nessa direção.
Mais forte se torna a metáfora por que os personagens não têm nomes. Simplesmente são designados por um detalhe, que pertence ao breve momento anterior à cegueira: a rapariga de óculos escuros, o velho com a venda nos olhos, o rapazinho estrábico.
Única a conservar a visão, a mulher do oftalmologista defende o primeiro grupo de cegos da selvageria total. É ela quem vai promover a volta progressiva à humanização dos personagens cegos -e, por extensão, do mundo.
Por detrás da aparente simplicidade da parábola, mecanismo do qual Saramago se utiliza com sofisticação, desfila uma visão rigorosa -ainda que não destituída de compaixão e, no fundo, de alguma esperança-, sobre a humanidade.
E, sobretudo, a prosa hipnótica -as páginas, como de hábito, se apresentam densas de texto, só lá no embate da leitura é que se adivinham as pausas, a respiração- do escritor cria uma armadilha indefensável: é sofrer com seus personagens, com o autor, até a iluminação final.
"Ensaio Sobre a Cegueira" catapulta a fruição da leitura -da qual não se escapa nos romances de Saramago, de tão belamente escritos- para um estado de tensão e revelação, só reservado aos grandes escritores.

Livro: Ensaio Sobre a Cegueira
Autor: José Saramago
Lançamento: Companhia das Letras
Preço: R$ 20 (310 págs.)

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